No fio da navalha
Tem
já um poder de tempo que corto o cabelo somente no manejo basicão da máquina
zero. Me avio naqueles salões populares, dou a letra da altura e, num tapa, antes
que eu ensaie pronunciar a desafiadora trava-língua ‘pipabaquígrafo’, o trabalho
se dá por encerrado. Foi nessa ligeireza toda que dei reparo que não usam mais,
pelo menos no caso do estado mínimo do meu cocuruto ultraliberal, a navalha.
Como não uso o serviço para outras demandas, desconfio que para o tratamento da
barba, sim, ainda se usa a lâmina articulada.
Essas
novas técnicas, com máquinas que cortam bem rés, vontades estéticas recentes,
além do medo de contaminações, levaram a navalha para um patamar reduzido de
utilização. Com ela, também a expressão ‘no fio da navalha’.
Consta
que para que a barba ou os arremates no corte de cabelo se realizassem com
êxito e no mais apurado refino, tinham que ser feitos ao fio da navalha, ou
seja, com o máximo de precisão. No limite, no extremo do acerto. De tão afiada
a lâmina, um movimento débil poderia provocar um golpe dolorido no cliente ou
escangalhar o desenho do corte.
Este
fino entendimento, o adelgaçamento definidor de resultados, a certeza e a
perícia que pautam uma decisão, compõem o teor de minhas reflexões cotidianas
quando admito que, por ora, vivemos no fio da navalha. Hoje em dia o
sobressalto nos impõe zelo na opção ou opinião mais comezinha, coisa qualquer
de calçada, de esquina, prosa vã ou sem sal. Qualquer deslize, qualquer falta
de cuidado e a confusão se instala.
Recorro
ao formigamento na mente, à associação de idéias para justificar porque minha
narrativa se dá, na maioria das vezes, no tempo passado. Digo que sou um
cronista retratista, memorialista. É um modo de sofrer menos. Remontar o
acontecido não dói, e até mesmo se nos lega algum sofrimento, o cronista dá um
jeito, recorre a uma anestesia de estilo, a uma figura poética. O que aconteceu
já era, já é memória, não pode ser mudado, mas pode ser interpretado,
romantizado, recontado em lirismo ou fantasias. Não há um momento tenso,
delicado, decisivo ao se contar os causos já idos. Não temos que cuidar com o
fio da navalha.
Agora,
olhar a história de palmo em cima, daqui pr’ali, no presente e até, de forma
ousada e previdente, rebatê-la para o futuro é missão que exige pé ante pé. Nos
recomenda cautela, canja de galinha, remédios pra pressão em dia e uma dose
altíssima de serenidade, porque senão, olha, a gente pira.
Mamãe
já dizia: ‘o dia de amanhã não nos pertence’, acrescento que nem mesmo o dia de
hoje. Nossa rotina é definida por humores e devaneios de poderosos investidos
de mando e controle. Nos batemos a cada dia com reinvenções do óbvio, do curto
e certo. Todo santo dia uma realidade é atacada e covardemente revista,
reordenada, alterada no significado. Mesmo os mais consagrados tratados da
ciência são vilipendiados. As narrativas circunstantes nos lançam ao ambiente
perigoso, melindroso retratado na ferramenta usada pelos profissionais de barba
e cabelo. O fio da navalha.
Eu
que não me dou sofrer na ficção, porque, para que tal aconteça, me basta o
noticiário matinal, me pego é com os tempos acontecidos.
Lá
no seringal, eu tinha um padrinho que era barbeiro. Tinha um medo que me pelava
dele. Não exatamente dele. Da máquina zero que ele usava. Lá pelos anos sessenta,
a máquina era de acionamento mecânico e difícil de pegar um bom fio de corte.
Cada passada do coco da gente era um suplício. Meu padrinho não perdia a
viagem. Quando na passada a máquina não cortava, ela, a um manejo diferenciado
dele, voltava arrancando o cabelo. Dindinho fazia visitas periódicas ao
seringal para as sessões de tortura. Assim que o anunciavam, eu ganhava o mato
e me escondia. Custava para me pegarem. Mas quando me achavam... fazendo a
releitura, mesmo no passado, na época da inocência, acho que vivia no fio, sem
fio, da máquina zero.
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