O seu legado
Consta
em toda notícia, todo boato, qualquer respingo de informação, opinião ou
impressão que a gente dá de encontra por aí, pela cidade da COP 30, que o tal
do seu legado tá que tá chegando e que a nós, nos vai valer que só. Sê bem-vindo.
O
que trará abrigado nos afortunados bolsos do tempo? Nos envolverá em seu manto
de realizações e divulgará cada uma delas num programa noturno do tipo “O bolso
do seu legado?”.
Expectativas
eletrizantes acompanham os regalos de seu legado. Dizque tem ponte se elevando,
estrada rasgando a mata, igarapés maquilados, hotéis forjados, canteiros
lantejoulados, serviços e entretenimentos ativados em nome do seu legado. A
Belém que queremos bem sairá da COP 30 repaginada, brilhantinada, empoada e no
rouge pó, ainda que sob o risco de borrar os traçados da face urbana ao
contato, fugaz que seja, com a chuva da tarde.
Legados
são registros que nos valem, representam conquistas, uma ou outra experiência
de relevo, por vezes, nos passam a dureza dos dias. São heranças de corpo e de
alma, de concreto, como as pontes que se elevam ou apenas espólios abarcados
pelos sentidos e ações, como o bom caráter ou a má índole.
Em
nossa caminhada por esta estrada fluida e veloz que é o tempo, vamos deixando
fiozinhos indicativos, ou trançados afirmativos, assentados, acondicionados a
uma realidade. Estes são os nossos legados que repassamos para os próximos,
para os dignos e interessados.
Que
o legado da COP 30 nos seja útil para, essencialmente, nos sensibilizarmos que
os caminhos a serem trilhados nos próximos anos podem causar o nosso bem ou o
nosso mal. Vai da gente. Sê bem-vindo, seu legado, se for do bem, pode até
ficar para um açaí.
Eu
por mim, me darei por satisfeito se o seu legado nos livrar das atitudes
miúdas, simples, cotidianas, que nos levam a incredulidade quando ocorrem, de
tanto que são absurdas, coisas que nos tempos atuais a gente nem malda que
ainda aconteçam com elaborada desenvoltura, no meio do nosso povo.
Do
jeito que presenciei ao caminhar pela principal avenida da Pedreira. Ali, o
próprio desenvolvimento da nossa trajetória já é objeto do seu legado. Calçadas
ocupadas, besuntadas de óleos, graxas aqui. Ali, uma atividade semi-industrial
de palmo em cima com a gente, sucatas, obstrução do trajeto por carros imensos,
humilhação e um sentimento íntimo de impotência. Mas nem é tudo. Deu-se que uma
hora dessas, me vi de encontro a um rapazinho, olha só, um jovem, categoria
etária aquela de quem a gente espera tanto! Aparentava ser funcionário de um
dos estabelecimentos. Saía de dentro da loja com um copo plástico. Estava
terminando o cafezinho do intervalo da manhã. Cruzou a minha frente com o copo
na mão, tomou o restinho do café, adiantou-se até o meio-fio, e pluft, ali
mesmo largou o copo. No meio da rua. Nessa hora, lembrei do meu legado como
contador de causos.
Há
algum tempo, publiquei uma crônica com este mesmo enredo. Estava num ônibus e o
rapaz jogou uma porção de resíduos plásticos pela janela. Na minha reconstituição,
forjei uma fala pra ele, explicando a ação: “depois o pessoal da prefeitura
venhu e varru”. Fez sucesso essa expressão que criei. A família, os amigos
quando se vêem em situações semelhantes, reproduzem o meu legado linguístico. E
por certo, meu legado estava, em alguma versão, na cabeça do rapazinho quando
deitou o copo plástico ao meio-fio.
Seu
legado da COP 30, se nos deixar lá dentro do cocuruto, um quê de sentimento de
cidadania, de respeito pelo espaço urbano, se gerar uma menção de fazer o
mínimo, reconhecer a necessidade de descartar apropriadamente os resíduos que
geramos, bem o mínimo mesmo, como o exemplo de admitir o uso de um recipiente
para lixeira... Se refletir, nas maquilagens, uma mensagem de preservação,
educação e consciência cidadã. Se nos fizer entender que nós somos o pessoal
que ‘venhu e varru’, a mim já me agrada que só.
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