sábado, 30 de agosto de 2025

crônica da semana - surpresa

 Surpresa

Se eu abrir meu coração no claro e justo, não escapa a minha recatada frustração com o ser humano. De besta que sou. De me achar metidão, exigente, a ponto de formar um padrão de personalidade e correr atrás de perfeições, ainda que ao custo alto da solidão. Mesmo admitindo que não sou o suprassumo da retidão, que não tenho um isso que o periquito roa de santidade e muito pelo contrário. O certo é que ante tantos descaminhos, ainda mais hoje com a indústria do ódio e da desinformação em alta, igual a muita gente, minha luta é diária pelo lado probo da vida.

Ninguém é perfeito. Eu é que fico tareando no espaço as beldades de caráter, quando deveria sim, me conformar e garimpar aqui e ali, boas almas que se salvam, cravadas de defeitos, mas limpinhas, ajeitadinhas, sem dolo ou marcas de maldade. Pessoas legais, que resistem às contaminações diárias, às rasteiras do mundo vil. Se eu me livrar de preciosismos, dos jeitos e modos de ser ideais, vou perceber que do nada, na vulgaridade das horas, emerge do mar agitado desta sociedade impregnada de egoísmo e ganâncias, pessoinhas da mais alta qualidade. Na diversidade dos termos e medidas, e que se assentam em todos os calibres. Do prestativo, ao desapegado. Olha que surpresa agradável aconteceu quando meu amigo deixou o celular dele dentro do táxi. Com o detalhe das reações. Dele e do motorista que encontrou o celular:

No começo, tem a chamada para um carro de aplicativo. Estávamos em folgada tarde a celebrar anos e anos de amizade. A corrida era pra experimentar a porção famosa de bolinhos de bacalhau produzida por um bar que ele conhecia. Ao ter a corrida cancelada e percebendo um táxi nas proximidades, no repente, deu sinal. Entramos no táxi. Ele ainda com o telefone celular na mão. Entendo que dada a inutilidade do aparelho, já que a tarifa viria não mais do aplicativo, mas do taxímetro, meu amigo deve ter se desligado, se distraído. Desviado a atenção para a conversa com o motorista, que estava era boa. Na certa, por estar atento aos casos ao largo, largou o telefone por cima do banco do carona. Eu, no banco de trás, prestava reparo, me surpreendia com a desenvoltura da conversa. Uma agradável viagem, versada em ironias, risíveis passagens e até em combinas para o próximo show do Roberto Carlos. Gente boa, o taxista; meu amigo, muito dado. Fizeram uma boa dupla.

Meu amigo tem uma consideração distante pelo celular. Sei disso por causa das nossas comunicações via ‘zap’. Quando passo a mensagem sei que ele só vai visualizar e responder depois de um tempo bem atemporal perto do que hoje é o costume da maioria. Daí que assumindo esta distância, quando descemos no destino, deixou o aparelho no táxi e só foi dar por falta, após a chegada da primeira rodada de bolinhos de bacalhau. Anunciou a perda na maior calma e alertou que não adiantaria ligar porque na última lembrança que tinha do telefone, constava a imagem da bateria já ir-se indo. Estava ali uma pessoa desapegada desses valores rasos modernos. Eu, por outro lado, fiquei num desespero só. Quis ligar pra Deus e o mundo. Fui desestimulado pelo meu amigo que alegou tudo ter senha e que no dia seguinte iria tomar as ações. Estávamos ali para celebrar nosso encontro e um aparelho celular não iria cortar nosso barato. Pesquei um bolinho do prato e tentei relaxar. Quando toca o meu telefone. Que surpresa agradável!

Ao encontrar o aparelho, o motorista cuidou para dar uma carga. Na certa, rejeitou umas corridas e se concentrou na devolução ao dono. Buscou as últimas ligações e me achou lá numa chamada. Postei a localização. Minutos depois ele apareceu com o aparelho. Oferecemos um agrado, não aceitou. A companhia para a outra rodada de bolinho e o profissional da direção declinou. Jogou as prendas para o dia do show do Reiberto. Voltou ao volante levando minha admiração.

 

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