O menino do sorvete
Há
alguns anos, tenho prestigiado o animado cortejo do bloco Mangal dos Urubus.
Eis que este ano, enquanto eu me empenhava num esquenta, pautado em (voluntariosas)
repetições de passos e coreografias inspirados nas marchinhas que a bandinha
tocava, me chega um pequeno e me oferece um afetuoso abraço, ali em meio aos
preparativos em andamento na concentração. Eu retribuí o abraço, com a mesma
pegada do pequeno e dei um beijo nele, porque sempre beijo as gentes que me
abraçam assim, com essa energia. Apartados, me perguntou se lembrava dele.
Respondi no curto e certo. Lembrava da fisionomia, dos detalhes físicos, mas, não
atinava de onde. Sou o menino do sorvete, lá do Arapari, me avivou a memória,
ele.
Disse
que me reconheceu ali na concentração, apesar da barba branca e de outras
marcas do tempo.
Não
éramos íntimos, isso no meu ponto de vista. No jeito de ver as coisas, dele,
não. Tínhamos até aquele dia, uma relação silenciosa, distante, revelada agora,
na concentração do Mangal dos Urubus.
Sucede
que, o garoto vendia sorvete, no porto, na época que eu era universitário e
atravessava de Barcarena para Belém, todo abençoado dia. E tão abençoado, que
mudou a vida do pequeno.
Na
época, eu já contava 40 primaveras. Era peão e militava no movimento sindical
do pólo industrial de Barcarena. Havia passado em Geologia, na Federal. Era
minha intenção, a qualificação nas áreas estratégicas das nossas relações de
trabalho. No ano anterior, havia tentado Direito, obviamente, pelo contorno
trabalhista. Não passei. Fiquei por poucos pontos. Perdi a vaga para alguns
sobrenomes tradicionais e para aquela famigerada questão da ‘bexiga natatória’.
Nessa época ainda havia aquele pacote de questões discursivas, na Federal. Escrevi
umas duas laudas falando sobre o bubuiar de um peixe se utilizando da bexiga
natatória. Olha que argumentei. Achava que já era até advogado. Não colou. Até
hoje, não desenrolo patavina da Física do Empuxo.
No
ano seguinte, fiz Geologia e passei. A valência é que o curso tinha a ver comigo
e com as interfaces das nossas relações sindicais.
É
dessa época a lembrança do garoto. Deve ter prestado atenção na minha presença,
porque o trânsito dos estudantes pelo porto era sempre um espetáculo digno de
reparo.
Por
força de lei, o município fornece passagem de ida e volta para os estudantes de
cursos universitários e outros especiais que se realizam em Belém. É um
benefício importante, decisivo para a maioria dos estudantes. Mas que, no
dia-a-dia, se dilui em embaraços. É que as empresas de transporte impõem regras
que constrangem os alunos.
No
meu tempo a barra era pesada. Para podermos viajar, tínhamos que chegar cedo,
validar a carteirinha, carimbar a passagem e esperar todo mundo entrar no
barco. Já quase no apito da saída é que éramos autorizados a embarcar. Tenho
pra mim, que ver um tiozinho passar por esta humilhação diariamente, de alguma
forma influenciou no futuro do garoto que vendia sorvete, por ali.
E
foi isso que ele revelou, na concentração do Mangal dos Urubus. Disse que
admirava a atitude daquela galera que vinha de Barcarena, e aquela força de
vontade o inspirou retomar os estudos.
A
bandinha se adiantou e o bloco deu a largada rumo ao Ver-o-Peso. O menino do
sorvete foi se juntar à galerinha dele. Despediu-se com um sorriso amigo, pediu
um contato e disse que vai me convidar para a formatura dele, no fim do ano.
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