sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

crônica da semana- o menino do sorvete


O menino do sorvete
Há alguns anos, tenho prestigiado o animado cortejo do bloco Mangal dos Urubus. Eis que este ano, enquanto eu me empenhava num esquenta, pautado em (voluntariosas) repetições de passos e coreografias inspirados nas marchinhas que a bandinha tocava, me chega um pequeno e me oferece um afetuoso abraço, ali em meio aos preparativos em andamento na concentração. Eu retribuí o abraço, com a mesma pegada do pequeno e dei um beijo nele, porque sempre beijo as gentes que me abraçam assim, com essa energia. Apartados, me perguntou se lembrava dele. Respondi no curto e certo. Lembrava da fisionomia, dos detalhes físicos, mas, não atinava de onde. Sou o menino do sorvete, lá do Arapari, me avivou a memória, ele.
Disse que me reconheceu ali na concentração, apesar da barba branca e de outras marcas do tempo.
Não éramos íntimos, isso no meu ponto de vista. No jeito de ver as coisas, dele, não. Tínhamos até aquele dia, uma relação silenciosa, distante, revelada agora, na concentração do Mangal dos Urubus.
Sucede que, o garoto vendia sorvete, no porto, na época que eu era universitário e atravessava de Barcarena para Belém, todo abençoado dia. E tão abençoado, que mudou a vida do pequeno.
Na época, eu já contava 40 primaveras. Era peão e militava no movimento sindical do pólo industrial de Barcarena. Havia passado em Geologia, na Federal. Era minha intenção, a qualificação nas áreas estratégicas das nossas relações de trabalho. No ano anterior, havia tentado Direito, obviamente, pelo contorno trabalhista. Não passei. Fiquei por poucos pontos. Perdi a vaga para alguns sobrenomes tradicionais e para aquela famigerada questão da ‘bexiga natatória’. Nessa época ainda havia aquele pacote de questões discursivas, na Federal. Escrevi umas duas laudas falando sobre o bubuiar de um peixe se utilizando da bexiga natatória. Olha que argumentei. Achava que já era até advogado. Não colou. Até hoje, não desenrolo patavina da Física do Empuxo.
No ano seguinte, fiz Geologia e passei. A valência é que o curso tinha a ver comigo e com as interfaces das nossas relações sindicais.
É dessa época a lembrança do garoto. Deve ter prestado atenção na minha presença, porque o trânsito dos estudantes pelo porto era sempre um espetáculo digno de reparo.
Por força de lei, o município fornece passagem de ida e volta para os estudantes de cursos universitários e outros especiais que se realizam em Belém. É um benefício importante, decisivo para a maioria dos estudantes. Mas que, no dia-a-dia, se dilui em embaraços. É que as empresas de transporte impõem regras que constrangem os alunos.
No meu tempo a barra era pesada. Para podermos viajar, tínhamos que chegar cedo, validar a carteirinha, carimbar a passagem e esperar todo mundo entrar no barco. Já quase no apito da saída é que éramos autorizados a embarcar. Tenho pra mim, que ver um tiozinho passar por esta humilhação diariamente, de alguma forma influenciou no futuro do garoto que vendia sorvete, por ali.
E foi isso que ele revelou, na concentração do Mangal dos Urubus. Disse que admirava a atitude daquela galera que vinha de Barcarena, e aquela força de vontade o inspirou retomar os estudos.
A bandinha se adiantou e o bloco deu a largada rumo ao Ver-o-Peso. O menino do sorvete foi se juntar à galerinha dele. Despediu-se com um sorriso amigo, pediu um contato e disse que vai me convidar para a formatura dele, no fim do ano.





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