sábado, 7 de março de 2020

crônica da semana - linda juventude


Linda juventude
É fato virado e mexido, que dou o maior valor no simbolismo das datas. Rastros deixados pelo tempo me atraem. E este março, olha que está têi-têi de dias emblemáticos. Agorinha, no início do mês, me tremi de pavulagem nas bases, quando dei ter alcançado a cifra de 36 anos com minha carteira assinada na profissão da qual me valho até hoje.  O subscrito foi em Rondônia, quando eu ainda era um bebê de 19 anos. Por aqueles dias, a minha linda juventude se desdobraria em mil partes que resultariam em indesejáveis sofrimentos, é certo, mas por outro lado, se emboletariam em prazerosas experiências.
Uma carreira profissional modesta, sem muito fulgor social. Maldita, às vezes. E que vem Integrada a uma vivência pessoal, íntima, cheia de preciosidades, cuidadosamente guardadas na memória (tem ‘amores gris’, lutas inglórias, desvãos, alardes, silêncios, sabores, traços e riscados tortuosos. Indeléveis saberes, dúvidas incontáveis. Certezas poucas, entretanto, imprescindíveis).
A profissão me exigiu viajar sempre. E é exatamente de cada canto que passei que destaco a paixão incorrigível. Foram os cenários, as paisagens, os calores e afagos das cidades, dos rios, dos intrincados sertões que me deram além do necessário à sobrevivência, a graça da contemplação e a satisfação impagável dos sentidos.
Dentre as maravilhas que pude usufruir me vem à mente, um anoitecer na beira do Amazonas. A lua imensa, vermelha, vez ou outra exibindo um movimento líquido, como se vibrasse em filetes coloridos. Um efeito impressionante, possível porque o berço de onde nascia a lua era o leito encantado do rio. Estava em Macapá. Trabalhava com ouro. Nada, porém, a mim, da passagem que tive pelo Amapá, me pareceu mais rico do que a imagem extraordinária daquela lua-sereia saltando de dentro do banzeiro.
O clarão que vem do céu me mundiou também no Xingu. Era época de pouca chuva. Noite sem nuvem. As estrelas minavam espremidas umas nas outras. Partilhavam brilho. Faiscavam tonalidades e intensidade diferentes das cores. O céu do Xingu, por aqueles dias era tão adensado que as mais tradicionais constelações, aquelas que a gente conhece e localiza a partir dos atlas celestes, mimetizavam-se. E uma faixa brilhante dominava o céu. A Via Láctea dos Antigos. A noite do Xingu me levava ao alvorecer da humanidade.
Essa mistura de passado e presente se mostrou da mesmíssima forma, quando ganhei o rumo do norte pela BR 174, saindo de Manaus. Cada corte de estrada era um mergulho numa profundidade atávica de 100 milhões de anos. A exposição da bacia sedimentar amazônica ao longo da rodovia transforma aquele espaço numa artimanha do tempo geológico.
Em Porto Velho, trilhei o caminho em que cada dormente representa uma vida. Embarcado na locomotiva Mad Maria, desbravei o inferno verde. Em Altamira subi as cachoeiras e me embrenhei naquele amontoado de rochas que exibiam desenhos, mensagens dos primeiros homens amazônicos. O sagrado enredo ancestral gravado na rigidez do migmatito.
Tendo começado bebê, antes dos trinta já tinha vivido pacas. Um envelhecimento saudável se antecipou em mim traduzido em luas cheias, céus cintilantes, trilhas e trilhos. Revirando as páginas de um livro bom, passando e repassando calendas emblemáticas, cascavilhando a folhinha dos anos, às vezes beiro à síncope, vou às raias da letargia, acho que vou ter um passamento, mas que nada, o que me vem é só uma tosse doce.


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