Linda juventude
É
fato virado e mexido, que dou o maior valor no simbolismo das datas. Rastros deixados
pelo tempo me atraem. E este março, olha que está têi-têi de dias emblemáticos.
Agorinha, no início do mês, me tremi de pavulagem nas bases, quando dei ter
alcançado a cifra de 36 anos com minha carteira assinada na profissão da qual
me valho até hoje. O subscrito foi em
Rondônia, quando eu ainda era um bebê de 19 anos. Por aqueles dias, a minha
linda juventude se desdobraria em mil partes que resultariam em indesejáveis
sofrimentos, é certo, mas por outro lado, se emboletariam em prazerosas
experiências.
Uma
carreira profissional modesta, sem muito fulgor social. Maldita, às vezes. E
que vem Integrada a uma vivência pessoal, íntima, cheia de preciosidades,
cuidadosamente guardadas na memória (tem ‘amores gris’, lutas inglórias,
desvãos, alardes, silêncios, sabores, traços e riscados tortuosos. Indeléveis
saberes, dúvidas incontáveis. Certezas poucas, entretanto, imprescindíveis).
A
profissão me exigiu viajar sempre. E é exatamente de cada canto que passei que
destaco a paixão incorrigível. Foram os cenários, as paisagens, os calores e
afagos das cidades, dos rios, dos intrincados sertões que me deram além do
necessário à sobrevivência, a graça da contemplação e a satisfação impagável
dos sentidos.
Dentre
as maravilhas que pude usufruir me vem à mente, um anoitecer na beira do
Amazonas. A lua imensa, vermelha, vez ou outra exibindo um movimento líquido,
como se vibrasse em filetes coloridos. Um efeito impressionante, possível
porque o berço de onde nascia a lua era o leito encantado do rio. Estava em
Macapá. Trabalhava com ouro. Nada, porém, a mim, da passagem que tive pelo
Amapá, me pareceu mais rico do que a imagem extraordinária daquela lua-sereia
saltando de dentro do banzeiro.
O
clarão que vem do céu me mundiou também no Xingu. Era época de pouca chuva.
Noite sem nuvem. As estrelas minavam espremidas umas nas outras. Partilhavam
brilho. Faiscavam tonalidades e intensidade diferentes das cores. O céu do
Xingu, por aqueles dias era tão adensado que as mais tradicionais constelações,
aquelas que a gente conhece e localiza a partir dos atlas celestes, mimetizavam-se.
E uma faixa brilhante dominava o céu. A Via Láctea dos Antigos. A noite do Xingu
me levava ao alvorecer da humanidade.
Essa
mistura de passado e presente se mostrou da mesmíssima forma, quando ganhei o
rumo do norte pela BR 174, saindo de Manaus. Cada corte de estrada era um mergulho
numa profundidade atávica de 100 milhões de anos. A exposição da bacia
sedimentar amazônica ao longo da rodovia transforma aquele espaço numa
artimanha do tempo geológico.
Em
Porto Velho, trilhei o caminho em que cada dormente representa uma vida.
Embarcado na locomotiva Mad Maria, desbravei o inferno verde. Em Altamira subi
as cachoeiras e me embrenhei naquele amontoado de rochas que exibiam desenhos,
mensagens dos primeiros homens amazônicos. O sagrado enredo ancestral gravado
na rigidez do migmatito.
Tendo
começado bebê, antes dos trinta já tinha vivido pacas. Um envelhecimento saudável
se antecipou em mim traduzido em luas cheias, céus cintilantes, trilhas e
trilhos. Revirando as páginas de um livro bom, passando e repassando calendas
emblemáticas, cascavilhando a folhinha dos anos, às vezes beiro à síncope, vou
às raias da letargia, acho que vou ter um passamento, mas que nada, o que me
vem é só uma tosse doce.
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