O fêmur cicatrizado
Li
esta semana, que ao ser indagada por jornalistas, sobre qual sinal da
sublimação humana, considerava o mais significativo, no ponto de vista
antropológico, uma professora especialista no tema, ao contrário do que se
esperava, no lugar de citar as evidências tecnológicas, os vestígios de sedentarismo,
a agricultura, a domesticação de animais, ou os traços de religiosidade,
surpreendeu a todos, dizendo que admitia um fêmur cicatrizado de um indivíduo que viveu há alguns milhares de anos, como o início
inequívoco do processo civilizatório.
Percebendo
o espanto dos repórteres, a pesquisadora justificou sua opinião dizendo que,
num período em que a luta pela sobrevivência era acirrada, no estágio da
evolução humana em que a força e a agilidade eram extremamente necessárias para
se conseguir alimento e também para escapar de predadores, um indivíduo
sobreviver após uma fratura que o impedia de executar movimentos essenciais (e
providenciais, como correr em fuga de um animal que o perseguia) só poderia ser
possível graças à ajuda de um outro indivíduo ou de um grupo de indivíduos.
Com
estes argumentos, a professora estabeleceu a solidariedade como o marco
decisivo, o inciso irrevogável na definição de um instante da evolução dos
seres humanos, que se pode chamar de embrião da civilização. Conceber uma peça
arqueológica que testemunha a cura e assegura a manutenção da vida de um
ancestral da espécie, como sendo um indicador do engrandecimento dos valores, é
considerar o nosso caminho sendo permeado por motivações existenciais que vão bem
mais além do instinto. É, por certo, a releitura da História a partir de um
outro ABC, de um código, diríamos hoje, mais humanizado. E o caminho vai longe.
É rico de empatia. Ultrapassava os limites do indivíduo coletor-caçador e
inaugura a figura presente, prestativa do companheiro. Aquele que te acode, que
divide contigo o alimento, te defende das feras. Te dá calor e afeto.
É
uma interpretação que nos permite medir também, nobrezas. Costumamos visitar a
História para conhecer a trajetória de personagens que se destacaram pela
coragem, pela sabedoria, pelas conquistas e riquezas em ouro e prata. Não é
comum a busca por heróis que promoveram ações altruísticas, ou mensagens de paz
ou curaram fêmures e almas.
Se
a gente, no lugar de cavucar a sanha sanguinária do Império Romano, fosse atrás
de um certo Uruc, teria uma aventura com um final feliz (e que preservaria a
relíquia arqueológica inspiradora da professora em outras ideias sobre o ser e
o estar do mundo).
Coletor-caçador,
Uruc ao explorar uma árvore de galhos grossos e lisos, atrás de frutas para
aplacar a fome, despencou lá de cima e na queda, partiu o fêmur. Urrou que
urrou por um bom tempo, porque as palavras para essas situações, há milhares de
anos nem se produziam ainda.
Depois
de muita dor, foi socorrido por M’ru, membro da tribo que tinha fama de bom
coletor e que por aquelas paragens, também coletava. Com Uruc nas costas, M’ru enfretou
os obstáculos da mata rasteira das savanas e as adversidades das planícies
lamacentas até entregar o acidentado aos cuidados do curandeiro da tribo. À
base de imobilização com gravetos verdes e óleos
lenitivos, a coxa foi cicatrizada e Uruc pôde voltar a coletar e caçar.
Enquanto
convalescia, imobilizado, Uruc sobreviveu porque o companheiro M’ru cuidava
dele. E sublimava a História.
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