sábado, 14 de março de 2020

crônica da semana - maré maré


Maré maré
Parte da minha adolescência, morei numa vila. O proprietário, de quando em vez recrutava a molecada para limpar a vala. Era quando os moradores começavam a reclamar da água empoçando no pequeno quadradinho do quintal. Era um transtorno em série.
A gente arrumava uma enxada e mandava ver. Identificávamos os pontos em que a água era barrada. Um acúmulo de areia aqui (assoreamento), lixo doméstico ali (entulhamento), capim e um matinho baixo no rego da valeta (barramento vegetal). Tudo isso a gente ia retirando e a água ia sendo liberada.
Tenho que contar essa prosa obreira, para demonstrar que a coincidência de maré alta com chuva forte pode até exercer uma influência no festival de alagamentos que está acontecendo em Belém, mas não pode levar a culpa sozinha.
Tirando uma pela outra, uma das alternativas para amenizar os efeitos das grandes águas de março, é fazer como o senhorio da vila em que eu morava fazia. Tem que desentupir os canais.
Não estou dizendo que é só isso, mas quando eu vejo a Pedro Miranda sendo engolida pela enchente e logo abaixo o canal do Galo ostentando árvores robustas no seu leito, sinto que facinho, estamos há uma carrada de trabalhos atrás. A tese diz que quanto mais liso, mais sem obstáculos o canal, mais facilmente a água corre.
Outras variáveis devem ser consideradas para entender os alagamentos em Belém. São decisivas, mas podem ser controladas. A maré alta tão aludida, é uma injustiçada.
A maré é um fenômeno astronômico que acontece por influência da Lua e, em menor intensidade, do Sol. Significa a variação diária na altura das águas do mar. Aqui, no nosso caso, pra dizer, o mar é a nossa baía o Guajará, que é quase um pedacinho do mar. Uma hora a baía tá cheia, outra, ela está seca.
A maré alta, por si, já é capaz de inundar parte da cidade. Esta semana mesmo o Ver-O-Peso, a região em torno da Doca, várias ruas do Reduto foram cobertas pela água que extravasou da baía. E sem chuva!
A somatória deste extravasamento da baía com 12 horas de chuva, então, provoca uma calamidade.
Tenho pra mim, que todo esse sufoco é provocado pela redução do espaço de acomodação da água. Seja da chuva, seja da maré alta. A tese diz da necessidade de termos canais com o leito e as beiradas lisos, para facilitar a correria da água. Acrescento que a falta de canais naturais também favorece os alagamentos de áreas marginais. Ali na doca do Ver-O-Peso, no lugar aonde os barcos de pesca atracam, era antigamente, a desembocadura de um igarapé que fazia seu caminho desde as imediações da Tamandaré. Ali, havia um canal que poderia abrigar a água vinda da maré cheia. Aterramos o Piry, alagamos o Veropa.
A paisagem de Belém mudou muito e não conseguimos, hoje, identificar as bacias hidrográficas da cidade. Podemos entender, porém, as bacias como sendo regiões coletoras de água e se não as localizamos ao natural, podemos reconhecê-las no traçado de canais que a cidade apresenta. Assim rapidola lembro do canal do Galo, da Doca, da Tamandaré, da 14, do São Joaquim... e por aí vai. São receptores que se alisados, para facilitar o escoamento da água da chuva e se dragados, para aumentar a capacidade de acomodação, poderiam contribuir para a redução dos reveses que passamos no inverno amazônico.
Eu sou só um cronista, mas se precisar, posso chamar minha patota, pegar uma enxada, escolher uma bacia dessas, e sair por aí, desentupindo canais.




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