terça-feira, 31 de março de 2020

pequenos pecados


III

Já que falei nos lanceiros, vou emendar com o caso. Antes, digo que a estadia na capital do Chile foi ótima. Temperatura sempre abaixo dos 5 graus, sol e bastante agitação na cidade. Sempre, porém, os alertas nos acompanhando. Certa vez, fizemos a visita a um povoado vizinho, com uma produção de artesanato bem destacada e com um perfil de produção, digamos assim, elitizado. Muita gente bacana freqüentando o local. Gringo pacas. Não era pra nós. Nos informamos e conseguimos a indicação de uma feira popular. O mercadão municipal. Tomamos o metrô e partimos pra lá. Com as mesmas e severas recomendações. Cuidado com a bolsa! Pensa num lugar com mina de gente e churrasqueiras espalhadas pelas ruas preparando assados de frango. Uma loucura! Impressionado que estava, tirei todo dinheiro que tinha dos bolsos da calça e guardei no bolso do casaco, lugar bem visível, sensível, e que eu tinha um controle melhor. Foi tudo na maior paz, no mercado. Lembrancinhas baratas, e povo na rua.
Eis que aconteceu. Chuva em Santiago é coisa rara. Baixo índice de precipitação tem a capital do Chile. Cai uma água aqui, outra acolá. Nesse dia, arriou um pampeiro. Passou o dia inteiro chovendo. Depois de uma excursão à fronteira com a Argentina, chegamos no hostel na broca. Nos aviamos para sair e comer algo. Debaixo de um chuvisco chato, partimos para o metrô. Era a primeira vez que pegávamos o metrô no horário de pico. Pensei que pela chuva, não haveria tanto movimento. Pensei errado. Outro pecado. Relaxei. Aproveitamos o início da noite para conhecer o edifício mais alto das Américas. Jantamos na praça de alimentação que tem no térreo do prédio. Estava com uma calça esportiva de bolsos laterais fechados com zíper. O normal era, em locais movimentados, eu guardar o dinheiro e documentos no bolso do casaco, como falei antes. Mas nesse dia, patetei. Na volta, pegamos uma vuca para entrar no metrô. Embarcamos aos empurrões. Logo nos primeiros momentos, percebi algo estranho. Uns caras, se movimentando, chamando a atenção para o mapa com as estações. Distraindo a gente. Um deles foi se ajeitando do meu lado. Segurou no corrimão, se ajeitou. Não via onde havia socado a outra mão. Estava era cascavilhando o meu bolso, o danado. Abriu o fechecler, enfiou os dedos em pinça. Senti aquele fervilhado dentro do bolso. Fiz um movimento brusco, ele disfarçou. Não sabia que ele já havia aberto meu bolso. O parceiro dele continuava distraindo a gente. Perguntando onde era a parada tal, se estava próxima, essas coisas. O camarada voltou à carga. Nessa hora, senti, levei a mão ao bolso e encontrei a dele. Dei o alarme. Ele se adiantou. Ainda puxei a mão dele pra ver se não carregava nada meu. O metrô parou, abriu a porta e ele correu para a saída. Imediatamente fiz a auto-verificação. Ele havia aberto os dois bolsos, feito a sondagem e se preparava para tirar tudo de dentro. Se não sou moleque doido da Pedreira, teria dançado bacana. Na estação seguinte, o outro desceu. Era tudo uma combina. Depois de tudo, bateu o banzo, o pânico. Lugar que não é o nosso, gente de língua diferente. Imaginei aquele povo todo no metrô, de Santiago, do Chile, da América espanhola toda conspirando contra nós. Descemos na estação integradora, ganhamos as escadas e corredores procurando a nossa linha, apavorados, era como se os lanceiros nos mantivessem na mira. Quando chegamos ao nosso quarto, refletimos sobre a mancada do dia, abrimos a janela, procurando a cordilheira, mas estava escuro e chovendo.

IV

A chuva durou o dia todo e teve uma participação especial no contexto de pequenos pecados, arrependimentos, mancadas e sentimentos posteriores de não se arrepender por ter tomado uma difícil decisão.
Ocorre que a chuva aconteceu exatamente no dia do nosso mais caro e mais esperado passeio. Iríamos ao pé do Aconcágua, na fronteira com a Argentina. Observo que a visita que fizemos ao Chile foi pouco tempo depois de um acidente em um dos pontos turísticos do país e que levou ao fechamento da área, ao endurecimento nas normas de segurança e criação de novos procedimentos. Uma das regras é que, se o tempo não estiver bom, as excursões para as montanhas são canceladas.
A saída estava marcada para as 5 da manhã. E o toró tava que tava. Em contato com a coordenadora do passeio, nada alterado. Eu, com essa coisa de me impressionar, já estava dando pra trás, revelei para minha companheira Edna, que estava com medo e que contava com a possibilidade de cancelarmos a viagem. Ela ponderou dizendo que a agência tinha as orientações e se fosse necessário o cancelamento, ela nos avisaria.
Sinais que justificavam a minha intenção de desistência se apresentavam bem antes das cinco da manhã. Acordei meio azuruote por causa de um barulhinho estranho dentro do quarto. Eram goteiras. Mina de goteiras. O quarto estava alagando. Molhava em cima da pequena cômoda, do cabideiro, uma linha firme de água avançava para a nossa cama, a ponta dos cobertores já estava encharcada.
Fui atrás do gerente do hostel. Ele dormia em um anexo e eu teria que atravessar uma área descoberta, embaixo de chuva e com temperatura beirando os dois graus. Missão! Pequei os cobertores mais grossos, joguei na cabeça e me abalei. Quase derrubo a porta do quarto dele. Não entendeu muito bem tudo aquilo, aquela visita inesperada, a chuva, a minha reclamação. Quando chegou ao quarto, caiu a ficha. Providenciou imediatamente outra acomodação e nos ajudou na mudança. Já instalados em novo quarto e secos, é que me bateu desistir do passeio, já estava dando cinco horas.
Os operadores de turismo estão atentos à dinâmica do tempo na região. Sabiam que a chuva ocorria na parte mais baixa do relevo e lá em cima, nas montanhas, o tempo estava bom. Diante desta informação, desisti de desistir. Cinco horinhas e poucas, a van encostou para nos pegar. Embarcamos ainda com chuva.
Em tudo por tudo, foi um passeio maravilhoso, cheio de sensações jamais antes experimentadas por nós. Desde o trajeto, com mais de duas horas de encantamento pelas paisagens extraordinárias, até a visão da portentosa cadeia de montanhas no limite com a Argentina, onde se localiza o monte Aconcágua exibindo seus 6.962m de altitude. Concentramos nossa visita em uma estação de esqui chamada Portilho. Lá em cima a temperatura marcava menos 14 graus. Taí,  foi um dia que não me arrependi por manter uma programação, em que pese os contratempos e a chuva que me deixou impressionado. Depois desse dia maravilhoso foi que um lanceiro, branco, todo empoadinho, abriu meu bolso e tentou me roubar no metrô. O saldo do dia foi tão bom, que nem forcei uma explicação sobre a mina de goteiras no quarto, mas o gerente, que ainda de madrugada, tomou a ação necessária, se desculpou e analisou o problema como o resultado de uma chuva atípica. Não chove desse jeito em Santiago. Aceitei a explicação. No frigir dos ovos, tudo acabou na tão almejada santa paz.


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