Ficar
em casa, quieto, para mim não é novidade. São incontáveis, nos últimos anos, as
vezes que, terminada a minha jornada da semana, acontecer d’eu entrar em casa
na sexta e só pôr a cara na rua na segunda de madrugada, para ir trabalhar de
novo. O fato de morar numa vilinha, até ajuda a compor um estado de reclusão.
Tem final de semana que não dou definição de absolutamente nada do que acontece
na rua, nem pra comprar o açaí eu me abalo.
Foi
uma opção minha. Nem para o nosso encontro de domingo, na banca dos escritores
paraenses, no calçadão da Praça da República, eu estava indo mais. A explicação
deve-se em parte pela simpatia que tenho pela solidão e também pela apatia que
se abateu sobre mim, desde a última eleição e ao risco sempre presente de
encontrar com gente intolerante, com quem até já fiz questão de travar embates
selvagens, mas que agora me entojam. Além disso, muitos dos divertimentos
populares que eu apreciava, findaram-se na cidade, perseguidos pelos últimos
prefeitos. A cultura popular, aquela que me atrai, foi quase que totalmente
dizimada em Belém.
Quedar-se
em casa, quieto, para mim, não me abala. O valor que esse recolhimento toma
agora, sim, é que baqueia. Uma coisa é fazer o recolhimento por vontade
própria. Outra é pela necessidade do isolamento social. Não escondo que sofri
um abalo nas bases, neste meu primeiro final de semana de quarentena.
Na
sexta-feira fui comunicado pela empresa em que trabalho, que, a hipertensão e
um problema coronário diagnosticado no ano passado, me colocam no grupo de
risco da Covid-19. A orientação é que eu fique em casa e sem um tempo certo para
voltar. Trabalhei até sexta, e, pra falar a verdade, já estava preocupado com a
minha exposição. Diariamente, no caminho da casa pro trabalho e do trabalho pra
casa, estimo uma interação com pelo menos 100 pessoas, isso fora as relações
dentro do ambiente de trabalho. Para mim, já estava, realmente ficando no
limite.
Revelo,
que embora precisasse desse afastamento, quando ele se efetivou, tomei um
choque. Caí na real.
Entendi
melhor, agora, o risco porque enquanto na rotina do trabalho, passava a maior
parte do tempo em Barcarena e, em certa medida, à parte das atualizações do
problema no Brasil. Quando chegava em casa, sabia de alguma coisa, mas o
cansaço me impedia de me impressionar.
Neste
primeiro sábado da quarentena, fiquei assustado. Muita informação. Muita
desinformação. Muito medo de um lado e, inacreditavelmente, pouco medo de
outro. Chacoalhando a realidade dos fatos e peneirando o que pode ser pertinente,
atinei para um cenário delicadíssimo.
Estar
no grupo de risco, e a esta dramática perspectiva, ainda associar o produto
disso, a alteração (desnecessariamente brusca) na rotina, me fez, nos primeiros
instantes pirar o cabeção.
Pensei
no meu trabalho. No abandono às pressas dos meus afazeres, nas tarefas que
deixei por lá em andamento, nas minhas obrigações, na minha coleção de pedras
raras que estavam guardadas em local improvisado por causa de uma reforma no
prédio; dei, ainda, que esqueci de passar a chave na gaveta da minha mesa, e
também que uma cartela do meu medicamento contínuo do coração ficou lá. Me
bateu, de repente, que não tenho previsão de voltar e organizar as minhas
coisinhas... Bateu o banzo, juro.
Por
outro lado, este apartamento compulsório, de boa parte do meu mundinho, está
servindo para sanear o meu espírito. Está claro para mim, que as coisas pelas
quais me bato, me estresso e saio do sério, podem ser nada de uma hora pra
outra. Eu que nos últimos tempos tenho me preocupado com o futuro estritamente
pecuniário, como um pé de meia para garantir meus dias de aposentadoria e a
vida que segue e que devo prover, das pessoas próximas de mim; hoje me quedo a
admitir que nem futuro, nem pés, nem meias podem existir se perdermos a batalha
contra o vírus. Então, nesse aspecto, estou mais tranquilo, desapegado. Estou
vivendo um pesadelo de uma viagem de avião cujo piloto sumiu. Assombram as
intenções malignas do governo Federal que ainda vão fazer eu me bater para
garantir meu salário no fim do mês. Não sei se o banco vai resolver aquela
pendência comigo. Se a minha planilha Excel que opera com dados constantes para
o orçamento doméstico vai acusar o golpe. De certa forma, me sinto impotente
para essas demandas. Minha prioridade é a batalha diária para respirar. Hoje a
minha microeconomia, a pecúnia que vislumbro se reduz ao básico do mês. O
suficiente para manter meus pulmões operando a contento.
Como
dizia antes, na porta da fábrica, dando uma conotação mais dramática aos nossos
embates sindicais: “posso até morrer na luta, mas antes de morrer, eu vou viver.
Eu vou viver!”
A
princípio, senti a estatística, o isolamento, o grupo de risco, fazendo em mim,
o efeito de uma sentença de morte. A impressão que tive é que fora largado em
casa, com a boca escancarada cheia de dentes, esperando o vírus chegar, papar
minhas enzimas ECA-2, ficar fortinho, se multiplicar, conceder-me o pedido
derradeiro, e a seguir, me dar a última forma.
Agora
penso diferente. É um conjunto de conceitos, técnicas e ações em favor da vida.
Entendo
que estou numa berlinda emurada de recomendações e cuidados (porque se eu pegar
o vírus ele vai bamburrar com as enzimas produzidas pela reação do organismo
aos remédios que uso para hipertensão). Isso me reduz a possibilidade de agir
coletivamente. É desconfortável esta situação de objeto e não de sujeito na
luta contra a pandemia. De qualquer forma, quero resistir, para mais na frente retribuir,
de um jeito ou d’outro, a mobilização da sociedade e das pessoas mais próximas
de mim (minha família, meus amigos, companheiros de trabalho).
Iniciaria
este texto, com o título ‘testamento’. Mas as horas passaram, os sinais foram
se revelando. Uma esperança foi nascendo dentro de mim (apesar das fortes
evidências em contrário, expressas numa perversa curva exponencial).
Pus
outro título. Uma, porque acho que, se nós, governo e sociedade agirmos com
sensatez e responsabilidade, vamos varar. Outra, porque além das minhas linhas
escritas, pouca coisa, de tamanho valor, tenho para deixar de herança.
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