segunda-feira, 30 de março de 2020

Inventário da solidão - pequenos pecados


Pequenos pecados

I

Ainda bem que antes dessa crise toda e a pouca perspectiva de melhora em curto prazo, eu fiz uma das aventuras mais fascinantes da minha vida. Conheci os Andes chilenos.
Não foi fácil. Exigiu algumas noites de plantão na internet à espera de uma boa promoção para as passagens aéreas. Outra procura para hostel com diárias em conta; um aperto de cinto nos meses que antecederam a viagem, e muita pesquisa junto aos mochileiros sobre costumes, mobilidade e serviços para que a gente pudesse aproveitar as atrações do lugar sem passar por aperreios e gastando o mínimo.
Foi tudo muito bem, tudo muito bom. Tirando os pequenos pecados...
A primeira coisa da qual me arrependo foi a escolha de horários dos vôos. A gente tem que colocar na cabeça que, se achar uma passagem de valor baixo, já ganhou a parada. Nada de querer sempre mais. Ingenuamente, foi o que fizemos. A partir do preço, o próximo critério que usamos para a definição da viagem foi o tempo de permanência nas conexões. Optamos pelo menor tempo. Nunca mais faço isso. Por mim, pode durar três, quatro, cinco horas. O que não pode é acontecer como se deu com a gente. Quando voltamos do Chile, tivemos só uma hora até entrar no outro vôo para Belém, e um monte de coisa pra cuidar nesse intervalo raquítico: retirar bagagem, passar na imigração, sair da área interna do aeroporto, fazer check in, despachar bagagem de novo, passar novamente pelo rito do detector de metais, sair feito doidos, no maior pique atrás do portão de embarque. Isso sem orientação de ninguém. Na volta do Chile, por pouco não tive uma síncope de tanta tensão e correria. Minha pressão foi lá pra cima. Pra nunca mais! Se tiver que fazer conexão e puder escolher, vou escolher um tempo em que eu possa fazer tudo na mais santa paz. Um detalhe que nos enganou foi que na ida para o Chile, foi a mesma uma horinha. Não houve tanto estresse porque despachamos as malas direto para Santiago. Mas na volta, a lei exige que se faça a retirada da bagagem e o procedimento alfandegário, quando entra no Brasil. Aí, na conexão em São Paulo, é sufoco.

II

Outro arrependimento foi a nossa falta de cuidado com a segurança quando desembarcamos no aeroporto de Santiago.
Havia um acerto com a direção do hostel, que um carro iria nos apanhar no aeroporto. Foi uma boa ideia, pois enlaçaria o serviço de transporte e hospedagem em um único pacote de custos e responsabilidades.
Ocorre que houve um desencontro nas informações de horário. Quando chegamos no aeroporto, e nos dirigimos ao local combinado, nada. Ninguém nos esperava. Diante de um problema que só fomos nos dar conta ali, na hora, que era a dificuldade na comunicação, pois há uma distância enorme entre a língua que eles falam e o nosso portunhol, cometemos o pecado.
O encontro era na frente de uma casa de câmbio. Havia sim, uma pessoa lá. Mas não era o mesmo do acertado com o hostel. Perguntamos algo, ele disse que o motorista havia estado ali, mas com a demora do vôo, abandonou a missão. Fiz outra bobagem. Mencionei o nome do hostel e da pessoa com quem eu me comunicava. O homem pegou o celular e fez (simulou, porque  chegando ao hostel, não confirmei este contato) uma conversa com alguém, como se autenticando a minha história. A seguir, agiu como se orientado pelo hostel, para nos atender. Nos informou que estava acionando outro carro. Tudo muito rápido, muito confuso, dificuldade na comunicação e... uma desconfiança. Aliviei um pouco, quando observei que o cidadão estava atendendo também outro viajante, apareceu um carro, o viajante foi acompanhado pelo homem e embarcado. Esperamos ainda um pouco, até que o nosso carro chegou. Guardamos as malas e embarcamos. E, absurdos dos absurdos. O homem que estava no aeroporto, entrou no carro também.
Se conto essa maluquice hoje, é porque correu tudo bem. Mas não recomendo. Agi contra minha crença. Sempre advogo que, em lugar que a gente não conhece, o mais seguro é usar o serviço do aeroporto. Fiz tudo ao contrário. Houvesse má intenção ali, éramos presas indefesas. Seria muito fácil nos subtrair um rim, tirar nossas córneas, o baço. Levar-nos para um lugar ermo, tomar tudo da gente. O detalhe é que estava com toda a grana para passar a temporada, em espécie. Os agentes que consultamos nos aconselharam a não usar cartão de crédito e também a não fazer câmbio no Brasil. Ou seja, poderíamos ficar com uma mão na frente, outra atrás. Deixo claro que o Chile é um país com baixo índice de violência. Crime organizado, de alto potencial não é comum por lá. Em Santiago, vale a atenção com os descuidistas, destes sim, fomos alertados. E tenho até uma história pra contar deles. Mas essa coisa de morte, assalto, seqüestro... não tivemos notícia. Em Santiago ninguém te aponta uma arma exigindo o celular.
Chegamos ao destino, inteiros e aliviados (acreditem, o homem do aeroporto foi no carro até o fim do trajeto e depois ainda seguiu com o motorista). Apenas uma saia justa com a ‘propina’, porque lá é coisa comum pedir gorjeta por tudo em quanto, e também pela majoração da corrida. Custou 5.000 Pesos a mais do que o previamente acertado com o hostel. Quando nos hospedamos, ajeitamos as nossas coisas, abri a janela, mirei o horizonte. Lá adiante, estava a cordilheira. As montanhas de brilho e cores exuberantes. Refleti sobre aquelas horas de indecisão e de temores reprimidos. Meus olhos se encheram de lágrimas. Chorei um choro envergonhado, porque a gente faz cada besteira, mas chorei aliviado de uma culpa enorme.

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