sábado, 1 de fevereiro de 2020

crônica da semana - Amar e outros medos V


Amar e outros medos - Parte V
Apareceu na janela exalando aquele cheiro de rosas, exibindo um sorriso fácil, faiscando um olhar sedutor. Contudo, deixando escapar a nítida possibilidade de nos entregarmos ao risco. Fez o convite. Então umbora!
Não havia poesia naquele chamado. Apenas prenúncios de liberdade. Fragmentos de ousadia. Porções de rebeldia.
Pus a minha roupa de campanha, arrumei uns trocados, passei umas gotas de Lancaster trás’da’z’urelha, demo-nos as mãos e partimos em busca de nossos sonhos.
(Ela vinha todo domingo cedinho, comprar três tapiocas com manteiga, duas com queijo e dois cuscuzes bem molhadinhos com leite de coco, que a mamãe vendia no fim de semana. Outras horas não a via. Tinha uma rotina apertada. Ex aluna do Souza Franco, fazia Pedagogia e inglês no curso livre da UFPA, e todo dia comparecia ao Centro Comunitário da Rua Nova, para ministrar aulas a grupos formados por adolescentes da comunidade que se preparavam para o vestibular. Recebi um convite para ir ao Centro, certa vez, para falar sobre Equinócio, as grandes marés de março e a influência desses eventos sobre a dinâmica dos rios na região do baixo Amazonas e baixo Tocantins. Um amigo meu que fez Mineração comigo e, naquele tempo era professor de Geografia, foi quem me convidou. Quando cheguei, ela já estava lá. Abismei: mas olha, não é a pequena dos cuscuzes! Dali em diante, procuramos nos ver mais. Centrávamos a nossa relação nas ações afirmativas para mudar o mundo. Mas sabe como é que é. A Pequena era gabaritada. Bonita. Generosa. Simpática, gentil. Aí eu fui me apaixonando. Elisa. Elisa com s, eu lembrava sempre, para não bambear e escrever com z, nos bilhetinhos que trocávamos marcando o próximo passo para viabilizar a nova era.
Eu era Universitário do curso de Geologia. Ela estudava lá do outro lado, na Pedagogia. Tinha que atravessar a ponte do Tucunduba para um encontro, no intervalo das aulas. Mas nunca dava certo. Nossos horários não combinavam e na hora do almoço, já sabe, cada um guardando sua vez na fila do RU. Nos topávamos somente operacionalmente. Ou era no Centro Comunitário, ou era rapidola na frente da casa dela ou da minha, para alinharmos os termos de um panfleto, de um plano de aula ou de uma convocação. A valência é que morávamos perto, no Chaco.
Era uma garota radical, ligadona, e aquilo, para mim, era um valor que se agregava aos encantos que via nela. O olhar, o perfume, o sorriso, e aquela disponibilidade febril ao risco).
Quando ela varou na janela, eu sabia que era onda braba. Uma mobilização por mais verba para a Educação. Um figurão do governo estava em Belém e íamos fazer aquela pressão.
Sentimos logo o baque quando a passeata despontou na Presidente Vargas. Moradores dos prédios da área jogaram água na gente. Elisa do meu lado, avançava inquebrantável. Quando chegamos perto do hotel em que a comitiva do governo estava hospedada, o pau cantou. Corre-corre. Tímidas reações. Perdi Eliza (ops!) Elisa. Spray de pimenta. Cavalaria. Bombas de efeito moral. Perdi Elisa, mas lutei até o fim.
No outro dia nos encontramos, na frente da minha casa. Ela estava com um corte no supercílio e o braço todo roxo. Tomei-lhe a mão e disse dos meus sentimentos.
Ela respondeu racionalmente, como lhe comum era. “Somos bons companheiros, porém nada mais do que bons companheiros”. Este era o meu medo.
Entendi, naquele instante, que o meu destino é a solidão


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