A Última Ceia
Aquela
noite fora marcada pela desesperança. Pelo desânimo e pela incerteza. Os
presentes desenhavam passos errantes sobre o quadrado frio. Zanzavam insanos
pelo mesmo palco que dias atrás (oh, destino cruel!) fora abrigo de alegrias desregradas
e sorrisos gentis.
Lá
fora, a noite chorava.
As
frias lágrimas da noite anunciavam o desterro e a solidão. Profetizavam a aviltante
hegemonia dos ‘amores servis’. Prediziam a pulverização de sonhos e esperanças.
O
pranto de uma noite escura dava a conhecer a todos, a dolorosa imolação das
almas.
Alguém
fez o convite. A mesa estava posta. Os outros se aproximaram e o pão, fatia por
fatia, foi distribuído. Um valioso rumor fez-se ecoar: “parece a última ceia”.
“Tomai
e comei todos vós.”
E cada
um tomou para si a sua cota de glórias e sacrifícios. E cada um repassou a sua história,
ali em volta da mesa.
Um
deles disse: “por quantos bosques escuros e traiçoeiros nos embrenhamos, mas
com o norte de nossas verdades, com a luz da justiça a nos guiar, sempre nos
achamos. Quantos gigantes de um só olho enfrentamos, e munidos de cajados e
pedras miúdas, mas com a pontaria providente e com a precisão da razão,
conseguimos derrubá-los a todos.”
“Este
é o meu corpo...”
Um
outro relembrou: “Quanto frio nós sentimos subjugados a imponderável solidão em
ermos descampados intermináveis, sujeitos a poeira e pó, mas conseguimos, enfim,
respirar aliviados ao fim de cada caminhada. Quanta dor nos consumiu as
energias quando, por insuportáveis torturas, sucumbimos à força brutal da
repressão impiedosa, porém, como a Fênix rediviva, desafiamos as trevas e, como
resposta aos ataques, alçamos subversivos e desafiadores vôos rumo ao infinito.”
Um
terceiro reiterou: “e foram as vitórias que o bom Deus nos concedeu. E foram os
obstáculos aplainados pela nossa modesta destreza e humilde sabedoria. E foram os
estímulos poéticos humanísticos ‘quando me encontro no calor da luta/ostento a
aguda e empunhadora à proa...’ que nos sustentaram durante toda a jornada.”
Um
outro abriu o coração: “e esta saudade de um tempo passado? E esta frustração
por amores perdidos? Amor de pai que não viu o filho nascer. Amor-amante sem o
perfume das flores. Amor entregue a tantos corações e, desgraçadamente, a nenhum
coração. E esta angustiante dor no peito por não ter um lar. Por não ter um
colo confidente aonde pudéssemos recostar a cabeça. E esta saudade de um tempo
perdido, irrecuperável. De um tempo jogado ao léu. Um tempo ‘...que o vento
geral tragou, em lufadas, para além dos fios de alta tensão...’
Inalcançável...Inalcançável...
“Fazei
isto para celebrar a minha memória.”
Aquela
noite não vai sair da minha memória. O gesto cristão da partilha da dor e do
pão A história revisitada, ali presente: um memorial. A solidariedade e a união
(como nos tempos das primeiras comunidades cristãs). O vil tilintar das doze
moedas. A existência sentida de um Judas.
“Serei
eu, senhor?”
(Naquela
noite, foram derrubados no campo de batalha. Abatidos em pleno vôo. Quando o resultado
da disputa foi anunciado, a platéia não se manifestou: naquele momento, reinou um
reverente silêncio.
O
vencedor não comemorou.
O
líder derrotado, então, pediu a palavra e falou. Talvez, como nunca tenha
falado antes, na vida. Proferiu um discurso grandioso, opulento, elegante.
Assumiu uma postura de estadista, de tutor. De pai. Mesmo derrotado, manteve a
cabeça erguida e o semblante sereno.
Poucas
vezes na história, um perdedor foi –paradoxalmente- mais sinceramente aplaudido
que o vencedor, como naquela noite).
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