Invadindo o cariazal
Às
vezes a gente ganhava a estrada de terra no rumo do não sei donde, e eu ficava
apreciando a mata pela janela. Selva de verdade. Fechada, escura, misteriosa, intimidadora,
trançada, sem fim. Me perdia em perguntas: quem é que se abala por essa mata a
dentro, meu pai? Quem é o doido que desafia este emaranhado verde de encantos e
incertezas e se embrenha nos ermos intrincados e inóspitos? E a resposta vinha
imediata: eu mesmo, ora. Eu mesmo.
Lá
no longe, o carro parava, eu arrumava as tralhas, alinhava a equipe, distribuía
as tarefas e invadíamos o temido cariazal, qualquer que fosse a vontade ou
intenção; fossem vagos ou inaudíveis, porosos ou agudizados, os desafios da
floresta.
Da
feita que destrambelhava e encarava a mata casta e indócil, algumas razões
suportavam a decisão. A luta pela sobrevivência. Dessa nem se fala. É o dito e
o certo. Uma profissão de onde se tira o sustento, o feijão e arroz diário.
Outros
porqueres, porém emolduram a carreira de geólogo (ah, sim, não sou geólogo.
Formei em Mineração, e na maior parte da minha vida profissional, atuei na área
da pesquisa mineral e geologia. Daí a afinidade com a peleja. Durante anos, eu
e os geólogos com quem trabalhei porfiamos ao par. Teimamos a dois. Também,
porque até um dia desses, freqüentei, mas não concluí o curso de Geologia na
Federal do Pará, tenho ligações, digamos assim, abissais, com o meio).
Tirando
as necessidades do corpo, outras razões justificam o mergulho na mata densa. Um
motivo bastante sólido é o fato de que nem tudo é fácil. O ouro, ainda mais
hoje em dia, não está ali na esquina. Não raro, ocorre nos interiores dos
interiores dos encaninhos secretos dos escondidos e tão e tanto espalhadinho e
disperso, que demanda talentos e zelos para retirá-lo do ninho. Este é um
componente forte na natureza do geólogo. É um fuçador, um procurador lógico que
envolve boa parte do conhecimento que tem para decifrar as afetações, os
caprichos com que a Terra guarda seus tesouros.
E
põe conhecimento nisso. Geólogo tem que saber muita coisa. E isso eu comprovei
no meu curso. Fiz uma disciplina chamada Estratigrafia (que no frigir dos ovos
traduz-se numa maneira elegante e simpática de contar a história da Terra).
Certo dia, o professor pôs uma imagem no data-show que mostrava um bonequinho
com cara de desesperado e acima dele, um monte de balõezinhos com sinais de
interrogação, de várias cores e tamanhos. Segundo meu professor, aquela imagem
era uma homenagem às minhas dúvidas. Me senti mais lisonjeado do que
pilheriado. Aquela era a representação do meu transe diante da matéria que me
exigia saber da terra, do céu, do tempo passado, dos bichinhos extintos, das
montanhas distantes, das praias perto, dos profundos do oceano e do raso dos
lagos. Muita coisa. Um desvelo que se bem feito, me permitiria entender o
porquê do carvão e a importância da samambaia na edificação do nosso planeta. Eu
me desesperando para compreender aquilo... E eu me desesperando tal e qual o
bonequinho do desenho...
Outro
fator que tira o geólogo de órbita são os deleites que a natureza oferece, exclusivamente,
àqueles que se arvoram a entrar na mata. Os afloramentos robustos, os grãos
brilhosinhos e arredondados no rés dos paleovales soterrados. A beleza incontestável
do mais humilde dos cristais de rocha. Eis alguns indizíveis prazeres permitidos aos geólogos.
Ontem,
30 de maio, foi o dia do geólogo. Dia de tomar uma, porque geólogo bebe. Parabéns
aos amigos novos, aos amigos antigos e ao meu filho Argelzinho que experimenta
o primeiro semestre e as múltiplas interrogações...
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