Inimigo meu
Até
na guerra há uma lei. Há aquela imposição de se ter a certeza do confronto.
Mesmo que haja diferença de forças ou derrotados prévios, há tênues contornos
éticos delimitando a selvageria das guerras (a devolução do corpo do guerreiro
Heitor para um funeral digno, como herói de Tróia, é uma prova dramática de
como, mesmo na guerra, se pode respeitar os valores, a honra e os sentimentos do
inimigo).
Sei
de casos de embates na região do Xingu, em que os índios expunham a cabeça do
inimigo no meio da aldeia. Esta cerimônia queria dizer que aquele combatente
havia sido muito forte. O rito ilustrava a valentia do adversário. Era um
reconhecimento dos valores do oponente.
Se
o índio sabe que seu adversário é forte e se os gregos reconheceram a Heitor o
direito de ser velado pelos seus pares, intui-se a concessão do confronto
aberto. O enfrentamento mesmo que feroz, é justo. Mirar-se face-a-face é pressuposto
do bom combate. Dá a chance de estratégias e defesas. A tocaia, não. A
emboscada ardilosa, não. A surpresa desleal não. A tocaia é a tradução da
covardia. Quem usa deste expediente para aniquilar seus inimigos, mesmo que os
mate, os destrua, entra para a história como um assassino ordinário, vulgar
(sequer ilustra um banquete, porque, como afirmavam os antropófagos, “não se
devora corvarde”).
Eu
sempre tive bem clara a figura do bom inimigo. Já os tive de ruma. É aquele que
se anuncia. Que esbraveja. Rosna na tua frente. Atêm-se a parvoíces, a
macaquices. Mostram logo os dentes. São límpidos e claros. Melhor tê-los a
eles, do que os silenciosos, do que os dissimulados. Do que aqueles que te
esperam na curva.
Tive
um maravilhoso inimigo. Seu Barroso. Era empreendedor em Altamira. Tínhamos
opiniões diversas até quanto à cor do céu. Por aí a gente tira. Vivíamos nos
arengando. Mas nos respeitávamos horrores. Ai de que quem falasse mal de seu Barroso
perto de mim.
Era
o tempo da primeira candidatura do Lula. Seu Barroso, que era ‘direitão’, tinha
uma queda pelo pessoal da UDR e achincalhava o Caiado dizendo que ele, o
Ronaldo Caiado, ora veja, era um socialistazinho enrustido. Meu Deus!
Seu
Barroso era da nossa turminha. Gente da mineração, administradores,
secretárias, geólogos, empresários. Uma galera plural e bastante ativa. Nosso
point era o restaurante do Carioca, um cara de muita coragem porque nos fiava a
conta, mesmo naquela época, com a inflação batendo os 80% ao mês. Era gente da
gente, o dono do restaurante. Houve, de tão acaloradas e iminentes que estavam
as nossas discussões, de o Carioca deixar a chave do bar com a gente e ir pra
casa. Amanhecíamos ali, nos enfrentando e, na contradição, procurando um rumo
para o Brasil.
No
calor da hora, Seu Barroso era bem objetivo. Dizia que se ele fosse para o
poder, eu tava ferrado. Não acabaria comigo de prima. Segundo ele, me poria pendurado
numa árvore e todo dia tiraria um pedacinho de mim. Comunista, segundo ele,
tinha que ser tratado dessa forma. Eu por mim, atava-me ao poder justiceiro das
revoluções. Rebatia que o colocaria no paredão e pronto. E assim, íamos nos
prometendo, nos admirando um ao outro. Seu Barroso me desafiava. Eu era um bebê
de vinte e poucos anos e ele assegurava que eu não teria responsabilidade
depois de uma noite de gandaia. Quite. Tomávamos todas e às sete e meia da
manhã eu passava no escritório dele para um café, antes do trampo. Só pra
provar que o Brasil ficaria em boas mãos com gente da minha laia.
O
Brasil não precisou que eu e seu Barroso nos exterminássemos. Por isso ele é
umas das minhas mais estimadas lembranças. Entretanto, no Pará, gente estúpida ainda
há, sem coragem de mostrar-se para o combate, que mata de tocaia.
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