A cratera da Tito Franco (ou
o trabalho enobrece o homem)
A
primeira televisão que tivemos em casa (uma caixa que parecia um rádio, com uns
botões assim grandões para ajustar volume e brilho mais um seletor de canal que
fazia tec tec tec quando girado) eu comprei com o recurso oriundo das gorjetas
mais rechonchudas que vinham do meu trabalho. Aquelas das entregas nas casas.
A
minha estréia na rua foi de um risco absurdo. O pegador do carrinho ficava
muito alto, acima dos meus ombros e era ali todo o controle da carga:
equilíbrio, distribuição de peso, velocidade nos movimentos. Para poder alcançar
as alças eu tive que deitar bem o carrinho, a borda veio à altura do meu peito
e aí já viu, eu tinha que sustentar no braço todo o peso. Essa força concentrada
em cima de mim era tão grande que todos os outros controles foram pras cucuias.
Saí assim mesmo. Zambeteando pela Almirante Barroso. Corri um perigo danado no
meio do trânsito ainda acanhado da antiga Tito Franco. Peguei muito carão dos
motoras. Fui tareando até a casa do freguês, peguei minha graninha, voltei com
o carrinho vazio, mas ainda sem muito controle. Os meninos foram fuxicar pra
minha chefe o desastre que foi minha saída e depois dessa experiência, fui
proibido de pilotar os carrinhos de compras na rua. Com o meu confinamento aos
limites do estacionamento, os meus dinheirinhos de gorjeta desmilinguiram-se
vertiginosamente.
O
normal era a gente embalar e levar os paneiros no táxi; no carro do barão, no
estacionamento. Até ali, rolava uma grana mínima, resultante de um acordo
tácito baseado no bom senso. Pintava 1 cruzeirinho, dois...não mais que três.
Uma gorjeta maior rolava quando a gente saía para levar as compras na casa do
freguês. Era nessa hora que eu me embananava. Meu aperreio começava ali mesmo
no salão do supermercado. Como não conseguia colocar os paneiros dentro do
carrinho, chamava um dos meninos para me ajudar. Às vezes, até o freguês dava
uma força.
Foi
o meu primeiro emprego com carteira assinada. Tinha exatos 12 anos. Penso que naquele
tempo não tinha o ECA ou um mecanismo de proteção social (assim da envergadura
das bolsas que ora grassam) ao menor, que o desencantasse do mundo do trabalho.
E antes que brados se levantem contra a conivência da minha santa mãezinha com
a minha situação de petiz trabalhador, saio por ela. Sempre por ela. Culpa ou
dolo nenhum teve. Houve de nos virarmos, o mundo pedia uma rima.
Mas
eu era muito pequenininho. Franzino. Ficava olhando os meus colegas de
trabalho, o Amujaci, o Beto, o Guarda-Mirim, o Fraza, o Beco; o Sabazinho,
filho do seu Sabá. Eram ali, de parelha comigo na idade, mas, olha, estavam bem
mais taludos, exibiam os músculos, as veias tufadas no braço. Eu, nem...Só a
casqueta, dava pra contar as costelas. Mas não abria não. Encarava as paradas.
Eu
era moleque que vivia o mundo do trabalho, mas não deixava de ter meus repentes
de criança. Uma vez inventei uma dor não sei onde e dei nó. Faltei ao trabalho
só pra ver um episódio imperdível de Daniel Boone. Outra vez saí do trabalho
chorando, peguei o Jurunas-Conceição chorando e cheguei em casa chorando porque
meus colegas maiores e mais fortes levaram toda a minha grana, ao final do
expediente, num jogo de bate com figurinhas da Copa. Me alfobitaram, me
deixaram na pira, mas foi roubando. Passavam cuspe na mão pra virar a
figurinhas. Só que eu percebi. Reclamei e me deram um samba. Neste dia,
procurei uma cratera na Almirante Barroso, pra me enterrar, mas mudei de idéia
porque mais logo tinha que trabalhar de novo. Meu mundo, minha rima para
Raimundo exigia.
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