Mobiliário
Terminei,
anterdonti, o livro O Nome da Rosa, uma obra belíssima que eu tava a fim de
reler há uma pá de tempo. Novesfora a trama policialesca, na batida da campa da
edição dei com os comentários finais do autor e prestei atenção, direitinho, à
luz que ele lança sobre ato de escrever. Diz Umbero Eco, que para contar uma
história, é preciso construir um mundo o mais mobiliado possível.
Tentando
mobiliar: uma cidade encaixada na margem côncava de um meandro do rio Acre. Do
outro lado, numa vaga do meandro, o Xapuri adiciona fraternalmente suas águas
ao Acre e molda a harmonia entre os dois rios. A cidade contempla aquele
encontro em meio ao bucolismo da areia espalhada pelo gracioso pontal que se
estende pela orla. Logo acima, a pracinha guarda o busto do qual contam-se
histórias inacreditáveis. Estendendo-se paralela à margem, a rua do Barbeiro é
ponto de encontro, de luaus românticos, de caminhadas aeróbicas. É o traço central
da cidade. Saindo dela rumos são tomados. Pode-se chegar ao centro comercial, à
maternidade, à igreja de São Sebastião, à praça Plácido de Castro, à rua da
Gaveta...
Dos
filhos que mamãe teve, fui o único a nascer na maternidade. Todas as minhas
quatro irmãs nasceram no seringal. Mamãe nunca me falou porque nasci na cidade
e nem eu perguntei. Mas posso mobiliar aqui um motivo...
As
chuvas de abril eram pesadas naquele ano da graça de 1963. A coleta do látex
não rendia, os homens saíam de madrugada para cortar seringa, na ida punham as
suas tigelas, mas o pampeiro não dava trégua. O aguaceiro derrubava o gotejo
apurado e jogava a tigela lá longe. Era o tempo dela, da chuva. Não adiantava
insistir. Os seringueiros então decidiram despachar as pélas que tinham e com o
numerário da venda, prevenirem-se com víveres suficientes para o restante de
inverno sem corte. Formaram o comboio. Minha mãe com a barriga por acolá,
acomodou-se no caçuá sobreposto à mula mais forte e se adiantou na viagem,
acompanhando a retirada de inverno. Aproveitaria a viagem para ficar na cidade,
na casa da vovó, que ficava na rua da Gaveta. Os burros iam de não se aguentar,
de tantas pélas e era um estirãozão de animais sem fim. O comboio subia
barranco, descia barranco, baixava a carga para puxar os bichos do atoleiro,
estendia lona, cozinhava, mas não parava muito tempo não. A viagem foi penosa e
longa. Quando enfim, deram na boca do Xapuri, negociaram com os aviadores ali
mesmo, do outro lado, toda a carga e atravessaram para o pontal. Uma legião de
homens e mulheres um tanto barreados ganhou a escadinha uma após outro, saíram
na praça, distribuíram-se pela rua do Barbeiro. Minha mãe correu para a rua da
Gaveta para se aninhar num lar quentinho e esperar a dor.
Em
1963, o Acre, havia pouquinho, deixara de ser território e passara a Estado. Nascer
num ano que termina em 3 desperta algumas curiosidades. Umberto Eco dá exemplo
no livro, que três vezes, negou Jesus, Pedro. Coincidências, correspondências
se apresentam a mim mais inertes e pueris. Três eram as posições capitais no
jogo de petecas (pri, si tri). Não havia o quarto (ou o qua) nem o quinto (ou o
quin). Após o tri, apenas o fona infinito. Três eram os alertas intimidadores
“vou contar até três pra me contares com quem colaste na festa, senão vou te
derrubar pra mamãe...um, dois e...e...”.
Em
1963, sob os auspícios de um Estado recém-criado minha mãe saiu de uma rua cujo
nome poderia constar de uma história de trancoso e se aprumou no rumo dos rios
irmãos.
Mobiliando:
a dor do parto, rua da Gaveta, praça Plácido de Castro, igreja de São Sebastião,
maternidade, eu.
Tenho uma plêiade de histórias desse Acre, quando morei em Feijó. Um dia, quem sabe, eu conto.
ResponderExcluirOi Raimundo,
ResponderExcluirEnfim entendi as regras do jogo de peteca e o que o tal do "fona". Incrível como lembras tudo com detalhes. É muito gostoso ler tuas crônicas. Achei muito bacana também o final, ou melhor, a "peregrinação" que culminou com a tua chegada.
Parabéns pra nós, que fomos agraciados com a tua autenticidade!
Um abraço.
Att., Deizi Lorena