Os sinais e o petisqueiro
Um
pecado, tenho em mim, e vivo me pegando com tudo quanto é santo e tenho porque
tenho encarreirado desobrigas nas ordens e nos tempos de penitências, pra me
livrar dele. Aconteceu: já dei um utensílio de cozinha, para minha mãe, de
presente, no dia das mães.
Não
foi uma panela, nem um escorredor de macarrão, mas teve ali, na biqueira de
indelicadeza com ambos. Foi um ralador com várias funções ‘Kimbar’ (acho que
era essa a marca). Pra falar a verdade, eu dei mesmo, porque me engracei da
peça (não dizem por aí que a gente dá de presente aquilo que gostaria de
ganhar?). Naquela época não se empregava ainda o termo multiuso, para essas invencionices
práticas multifuncionais. Mas era um belengodengo versátil e simpático. Tratava-se
de uma placa metálica estreitinha com um extremo fazendo as vezes de abridor de
garrafa; no outro lado, uma ponta gradativamente adelgaçada terminada em gumes
duplos e uma fenda saliente no meio. Ao longo da peça, perfazendo boa parte da
área de uso, um ralo de malha fina e ainda, antes do abridor de garrafa, uma
outra fenda com a aba saliente, dizque, para descascar legumes. Estava acondicionado
em um platiquinho justo colado a um cartão duro com dizeres maravilhosos sobre
aquele artefato e a marca exposta no alto em vermelho. Na parte coberta pelo
plástico a gente percebia bolhas de ar pequenas, pressurizadas, e aquela
textura dava à embalagem uma tez granulada boa de pegar, boa de passar o dedo.
Éraste! Coisa de menino besta: endoideci. Comprei com toda a boa vontade para
presentear minha mãe num segundo domingo de um maio distante, mas nem um
pouquinho indulgente.
Minha
mãe, santinha que era, deve ter recebido o presente com agrado, dando os
devidos descontos à minha inocência. Arrisco até dizer que fez uso do berimbelo
por algum tempo, depois deitou-o n’algum canto esquecido do petisqueiro. Discreta
e indiretamente deixou revelar, sem tanta dor, o verdadeiro ‘apreço’ que tinha
por aquele presente. Anos depois, já taludinho, alfabetizado e iniciado no beabá
politicamente correto, percebi a gafe. Mamãe não merecia aquilo. Mas tenho um
atenuante para tamanha grosseira. Ela, com a mesma tez e traço, não mais
ocorreria. Como se tocado por uma varinha provedora, não mais voltei a lançar
mão de regalos funcionais. Quedei-me ao viés estético, cuidador. Assim, de um
ano para outro, dei de presentear a mamãe com mimos que realçassem e
valorizassem a mulher que ela era. Que lhe ativasse a vaidade. Um sapato, um
batom. Uma bolsa. Uma blusa florada. Uma lavanda leve. Certo dia, dei-lhe um
poema e a partir daí, desandei a presentear-lhe com sentimentos verdadeiros, carinhos,
dengos, confissões apaixonadas, delações de saudades, e drásticas
reconciliações caso urgissem (estes, os melhores presentes, porque nada melhor
há do que viver sem zangas ou faltas com a mãe da gente).
Logo
que tornei da leseira que cometi, fui tateando um jeito de superar o trauma do ‘Kimbar’.
Se não com presentes doirados ou de realce, ao menos saí daquela coisa de
obsequiar minha mamãe tendo como base o perfil de dona-de-casa obreira. Não sei
se consegui. Minha mãe não ligava pra essas coisas, ou pelo menos, não
demonstrava de prima, pesar ou contentamento. O petisqueiro deteriorou-se e não
mais houve sinais escondidinhos na casa que aludisse ao humor de mamãe. Tenho a
impressão que nos acertamos, porém.
Amanhã,
dia das mães, minha mãe não está mais entre nós, mas vai ganhar um poema, vou
cantar, vou cantar pra ela e procurar sinais, buscar sinais no céu de maio (ou talvez
em mim mesmo) de seu contentamento.
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