sábado, 29 de agosto de 2015

crônica da semana:discorrente vizinho

Discorrente
Por isso que não presta a gente se entregar com beira aos ruídos e pregações. Não tenho bronca de religião nenhuma, prezo a fé, acho a crença um elixir de esperança, dou o maior valor nos ritos, nos mitos. Só me reservo o direto de postar meu pezinho mais atrás nas transcendências e sublimações.
Caminho toda manhã com um parça fiel de uma igreja tal. E ele, eloquente, discorrente (nem sei se esta palavra existe, mas pra ele vale), faroleiro (e tricoteiro de doer), ó, só no meu ouvido. Fluido na provação, pleno nas virtudes. Inspirado na doutrina, não se acanha em recitar recomendas e dizeres comuns da livre interpretação das escrituras. Num certo momento cravou um “orai e vigiai”. Até aí tudo bem. Sou ex aluno salesiano,vivi um tempão dentro da igreja, fiz curso de Bíblia com o padre João Maria na Aparecida (que pronunciava Nabico, Nabicodonosor, quando se referia ao rei babilônico), frequentei as comunidades de base, sou meio íntimo dos ditos populares amalgamados a versículos e capítulos sagrados. Saquei que o bom conselho a gente encontra em Mateus, 26 e em Marcos, 14:38, de modos que assenti com a dica imperativa do parça.
Só que ele completou: “orai e vigiai, não estando dentro da casa do vizinho, mas prestando atenção, dando conta e observando”. Epa! Pode parar. Dei reparo no jeito compenetrado, sisudo com que ele fazia o seu sermãozinho. Maior cara dura. Sem nem tremer uma prega da regada do olho. Aquele semblante de sacrista agudizado não me convenceu. Pensei cá comigo “Deus não se mete com essa parada de vizinho não”, aí tem treta, o temente já está catequizando por conta, a partir de inquietações íntimas. Hum..humm. Por isso que não dá pra se entregar com beira, é o que conto, é o que conta a minha fé.
E todo dia, de manhãnzinha é esta cantilena séria, sempre com uma pitadinha de medos apocalípticos e ares de fim de mundo. E eu ali,ó, com o pé mais atrás, na nossa caminhada.
A prosa matinal de evangélica e passional; de uma parte e de outra tem um pouco, mas carrega também a indivisibilidade urbana no cerne da questão. No fim e no termo de tudo está a nossa relação, o nosso embate e a nossa confraternização; o nosso inevitável entrelaçamento, a nossa amálgama, a nossa peleja de amor e ódio com o incauto do nosso vizinho que por esta hora está com a orelha pegando fogo.
E por falar nisso, de vizinho tenho tantas...mas não conto porque não tô aqui para arengar e nem pra atiçar maledicências e malquerências por de cá, por de lá; nem pelo de confronte da porta da rua, nem pelos fundos dos chagões ou quintais.
Creio que na pregação diária nossa comunidade se aproxima dos primeiros cristãos quando dividimos aquela xicrinha de açúcar na hora exata que ela à mesa falta ou quando um bom homem tira o carro da garagem na alta madrugada para acudir alguém à urgência e emergência salvadora. Estas são as imagens que me ficaram da vizinhança e, estas lembranças, sim, me fazem orar e vigiar sem ter que, necessariamente, prestar atenção na vida ou estar dentro da casa do próximo.


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