Discorrente
Por
isso que não presta a gente se entregar com beira aos ruídos e pregações. Não
tenho bronca de religião nenhuma, prezo a fé, acho a crença um elixir de
esperança, dou o maior valor nos ritos, nos mitos. Só me reservo o direto de
postar meu pezinho mais atrás nas transcendências e sublimações.
Caminho
toda manhã com um parça fiel de uma igreja tal. E ele, eloquente, discorrente
(nem sei se esta palavra existe, mas pra ele vale), faroleiro (e tricoteiro de
doer), ó, só no meu ouvido. Fluido na provação, pleno nas virtudes. Inspirado na
doutrina, não se acanha em recitar recomendas e dizeres comuns da livre
interpretação das escrituras. Num certo momento cravou um “orai e vigiai”. Até
aí tudo bem. Sou ex aluno salesiano,vivi um tempão dentro da igreja, fiz curso
de Bíblia com o padre João Maria na Aparecida (que pronunciava Nabico, Nabicodonosor,
quando se referia ao rei babilônico), frequentei as comunidades de base, sou
meio íntimo dos ditos populares amalgamados a versículos e capítulos sagrados. Saquei
que o bom conselho a gente encontra em Mateus, 26 e em Marcos, 14:38, de modos
que assenti com a dica imperativa do parça.
Só
que ele completou: “orai e vigiai, não estando dentro da casa do vizinho, mas
prestando atenção, dando conta e observando”. Epa! Pode parar. Dei reparo no
jeito compenetrado, sisudo com que ele fazia o seu sermãozinho. Maior cara
dura. Sem nem tremer uma prega da regada do olho. Aquele semblante de sacrista
agudizado não me convenceu. Pensei cá comigo “Deus não se mete com essa parada
de vizinho não”, aí tem treta, o temente já está catequizando por conta, a
partir de inquietações íntimas. Hum..humm. Por isso que não dá pra se entregar
com beira, é o que conto, é o que conta a minha fé.
E
todo dia, de manhãnzinha é esta cantilena séria, sempre com uma pitadinha de
medos apocalípticos e ares de fim de mundo. E eu ali,ó, com o pé mais atrás, na
nossa caminhada.
A
prosa matinal de evangélica e passional; de uma parte e de outra tem um pouco,
mas carrega também a indivisibilidade urbana no cerne da questão. No fim e no
termo de tudo está a nossa relação, o nosso embate e a nossa confraternização; o
nosso inevitável entrelaçamento, a nossa amálgama, a nossa peleja de amor e
ódio com o incauto do nosso vizinho que por esta hora está com a orelha pegando
fogo.
E
por falar nisso, de vizinho tenho tantas...mas não conto porque não tô aqui
para arengar e nem pra atiçar maledicências e malquerências por de cá, por de
lá; nem pelo de confronte da porta da rua, nem pelos fundos dos chagões ou
quintais.
Creio
que na pregação diária nossa comunidade se aproxima dos primeiros cristãos
quando dividimos aquela xicrinha de açúcar na hora exata que ela à mesa falta
ou quando um bom homem tira o carro da garagem na alta madrugada para acudir
alguém à urgência e emergência salvadora. Estas são as imagens que me ficaram
da vizinhança e, estas lembranças, sim, me fazem orar e vigiar sem ter que,
necessariamente, prestar atenção na vida ou estar dentro da casa do próximo.
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