O louco do Xingu
Eu fiquei impressionado com a arrumação
daquele atleta doidão que desceu uma cachoeira de 30 metros num caiaque. Pai
d’égua! É o meu sonho fazer uma peraltice dessas. Em contrapartida, quem deve
ter torcido o nariz para a presepada do canoísta foi o meu amigo David Correia,
um crítico contumaz dessas aventuras radicais. Até imagino o comentário que ele
fez: “são uns desocupados”.
A verdade é que as cachoeiras, mesmo que
sejam a gititas, pela beleza que exibem, exercem um fascínio sobre uma pá de
gente. Num dos rituais realizados pelos índios Gaurani, no filme “A Missão”, o
diretor Roland Joffé elabora uma alegoria fatalista rodando uma cena com
um corpo despencando de uma caudalosa cachoeira. Usa também esta poderosa queda
d’água como uma barreira geográfica na defesa das missões jesuítas. Deste mesmo
argumento limitador, a literatura histórica também se nutre. Ao descrever os
processos que resultaram na construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, o
pesquisador Manoel Rodrigues Ferreira introduz a narrativa apresentando as
cachoeiras dos rios Madeira e Mamoré. E vai além: faz um mapa registrando os
acidentes da bacia amazônica, tanto de uma margem, quanto de outra.
É aí que entra o Xingu.
A razão do historiador traçar os contornos
da bacia é que os rios, a partir de um certo ponto começam a subir o terreno,
encachoeirar e a dificultar a navegabilidade. E este era o grande motivo para a
construção da ferrovia Madeira-Mamoré, evitar a fúria das corredeiras.
O Xingu, não foge à regra. Nas
proximidades da foz, é largo, canal único, navegável, corre sobre leito
rebaixado e sofre a influência, mesmo que acanhada, da maré (na travessia de
Belo Monte a gente percebe esta dinâmica do sobe desce diário das águas).
Agora, mais adiante, subindo um pouquinho e já adentrando à volta grande, o
bicho pega. Neste ponto o Xingu sai de cotas próximas de 10m para elevações
acima de 100m, ou seja, dá um salto. É o início das cachoeiras, e barco, já
era. Até Altamira, este trecho é denominado de Volta Grande. E é mesmo. O Xingu
tem uma direção constante até Altamira, mas quando chega na cidade, o rio dá
uma guinada drástica num arco de aproximadamente 180 graus que se desfaz lá em
Belo Monte. O curioso neste trecho é que, mesmo realizando em grande escala, uma
curva, o leito do rio, numa escala menor, se desenha em segmentos
primorosamente retos e intensamente recortados. Em derivações retas, certinhas,
dotadas de grande energia sobre leito de rocha cristalina (este cenário para
uns meninos que eu conheço, é mamão com mel. É o beabá da Geologia Estrutural).
Eu estive numa dessas cachoeiras, mas a patetice e as intempéries
fotoquímicas me impedem de provar com fotos minha aventura. As lembranças estão
só no cocuruto. Foi na localidade de Juruá, acima de Belo Monte. O Xingu ali é
uma provação. Verte em 70m de canal toda água que corre acima numa largura de
mais de um quilômetro. Por aí a gente tira a pancada. Essa é uma cachoeira
braba. De dar medo. Acima dela, vêm as interligações retas. Na maior delas,
outra cachoeira. Ali, as exposições de inscrições rupestres. Mas ora, se não
fui lá. Desci na praia, fui me ajeitando e vi o hieróglifos misteriosos, as
mensagens que nossos ancestrais deixaram. Não resisti. Fui me equilibrando
embaixo da cortina de água alvoroçada, e me postei herói, sobre um lajeiro. Meu
companheiro de aventura clicou com a minha Olimpus Tripp, um dos momentos mais
eternos da minha vida. Não foi assim, coisa de louco do caiaque, mas...A foto
já era, desintegrou-se com o tempo, mas acreditem em mim. É a pura verdade, viu,
David!
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