Os olhos de Guevara
Eu.”Na sina do violeiro, vivendo como estrangeiro , na terra em que nasci. Roubo versos sem rumo sem rima, de canções que nunca ouvi”. Eu vejo. A fúria andina erguer-se com a brutalidade abissal sobre a Ameríndia sulcada por Tordesilhas : aquém, o brasilianismo pagão e as guianas transoceânicas ; além , um simpático e silencioso alpendre a apreciar as verdes e pacificas águas Rapa Nui. Eu vejo . As gentes ossudas e piolhentas a vagar insones , a peso de chicoteios capatazianos, pelas florestas abafadas e gotejantes. Eu vejo. Os mineiros cor de cobre comendo pedras de carvão sob a batuta ardida do capitão-do-mato. Eu vejo os oficiosos guardiões a arrancar as vísceras das gentes e ofertá-las aos urubus. Eu vejo. O negro dos olhos, os cabelos escorridos de índio, os braços redentores erguidos de Simon Bolivar e Sepé Tiarajú a libertar dos servilismos, as gentes. Eu vejo o crioulo canto caribenho, acreano, portenho... A paz marajoara e as alvíssaras notícias dos pampas colorados. Eu vejo. O meio do mundo calorento e as amazonas seminuas de Macapá e Guayaquil. Eu vejo. O índio boliviano de cócoras, com o olhar perdido sobre a neve alpina, a mascar a folha reconfortante. Eu vejo. Ao norte a estátua gaulesa benzendo o mundo livre cá embaixo com salpicos de vodka e cuba libre. Eu vejo tudo. Aqui de cima, como o condor peruano eu vejo tudo: os homens desabotoarem a minha braguilha e me cortarem a honra. Os flashes disparados insistentes a me eternizarem a face. As imundícies escorrendo pelas valetas rasas da aldeia, misturadas ao meu sangue morno. Eu vejo tudo. Um homem com cara de mau a me cutucar as feridas abertas pelas balas. O meu rosto atento, o meu peito nu, os meus pés gretados de tanto andar, os meus braços largados sobre o estrado cru, as cabeças pensantes e tranqüilas, o telhado falhado e barrento, a aldeia primitiva, os cães vadios, o riacho incolor, as nuvens geladas, o céu infinito... O meu corpo asmático enterrado na América querida lá embaixo, a esperar o abraço paterno de Deus. Eu vejo tudo aqui de cima, como o condor soberano. Eu vejo tudo. Os nove nãos penetrando no fundo da minha garganta e me calando a voz na manhã de 9 de outubro em La Higuera. Eu vejo o ranger de dentes dos rangers bolivianos. Vitoriosos e tristes. Eu vejo tudo com os olhos. Camponeses, cisplatinos. Clementes e tementes pelos meus filhos favelados. Eu vejo tudo com os olhos. Com os olhos faiscando flores benfazejas à índia paraguaia. Querendo explodir a mãe de todas as guerras e o sereno noturno e meigo a me impedir. Com os olhos poderosos, messiânicos, vislumbrando horizontes felizes. Com os olhos a sentir, ao largo, as mãos fiéis a me tocar a alma endurecida pela dor, terna porém, para todo o sempre. Eu vejo tudo com os olhos vivos de Guevara. Luz a brilhar pelas noites de latino-América. Eu vejo tudo com os olhos vivos de Guevara. O corpo estendido, entregue ao estrado boliviano e os olhos renitentes, desafiadoramente acesos “a velar pelo sorriso adormecido das crianças”.
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