Eu era pequeno, nem me lembro
Só lembro que desde aquele dia e por anos e anos, a minha mãe nos levava, a todos, a uma oração, antes de dormir. Rezávamos a Ave Maria de joelhos e cheios de fé porque minha mãe dizia que a santinha havia me livrado de um encalacre federal.
Eu era bem bebê. Tinha lá uns quatro anos. Minha irmã, Ana Valéria, é um ano mais velha que eu, naquela manhã friinha, lá na planície do rio Acre, contava com pouco mais de cinco anos. Virávamos, mexíamos e pintávamos os canecos, porém, pelo terreiro amplo que margeava o barracão do seringal São Miguel (e hoje eu até dou este desconto para as peripécias que fazíamos porque imagino como é que se divertiam os garotos naqueles ermos acreanos desprovidos de ruídos e modernidades. Lembro que eu, por vezes, era jogado numa caixa de sabão vazia e dela fazia de um tudo: carrinho sem rodas, caminha, lambretinha, peniquinho, ruinhas de seringuinhas... E varava os dias me divertindo quieto e sozinho, como era bom de ser. Mas quando me soltavam...).
Ana Valéria não contente em subir nos cajueiros para catar os frutos e depois comê-los com sal, chamou os pequenos (todos afilhados de minha mãe) e comandou uma descida estabanada para o igarapé que ficava um pouquinho longe do barracão, já no meio de uma mata rala (à época, já havia, meio que instintivamente, entre os seringueiros, o conceito de mata ciliar). E quem ficou para trás? O cabeçudinho aqui, com um andar tremelicante, meio cai não cai naquele declive radical que levava às águas do Ina. Minha irmã não contou conversa. Desacelerou, me pegou no colo e continuou a carreira rumo ao vale do igarapé. Aí, rolou a tragédia...
A seringa gerava uma grana boa na época. A borracha alcançava mercados distantes. E na proporção que se exportava, também se adquiria produtos de fora. E os enlatados faziam um sucesso! Sardinha da costa portuguesa, ervilhas francesas, presuntos italianos, almôndegas dinamarquesas. O seringueiro se endividava com o patrão adquirindo aqueles produtos alienígenas (não podiam praticar a cultura de subsistência, lembro. Tinham que depender sempre dos víveres oferecidos pelo patrão), alimentando-se daquelas massas transoceânicas e, como hoje (infelizmente) largando os resíduos ao tempo. Resultado: no caminho para o igarapé minha irmã escorregou no limo verde e eu rebolei sobre uma lata de conserva.
Minha irmã chorava mais que eu. Meu pai teve que vir às carreiras lá das matas (e como a presença do meu pai me confortou. Papai, papai, papai! Aquele abraço que papai me deu... Trago comigo até hoje a absoluta certeza da segurança que se fez real naquele instante em que meu pai me tomou no colo e me cuidou).
Depois de tantos anos, não é difícil de achar a cicatriz aqui no meu joelho direito (até hoje é uma teba!). Acho que varei mesmo.
De lá do seringal até à cidade, eram seis horas no caçuá. Não havia tempo para o transporte. Minha mãe cozeu o café, colheu o mais que pôde de borra e fez uma compressa no meu golpe com tiras de um lençol que quarava no quintal. Depois chamou os vizinhos, as comadres, a família. Pôs a imagem da Virgem de Nazaré no oratório e pediu que ela nos acudisse.
Daqui a pouco quando a santinha desembarcar da romaria fluvial, vou estender minhas mãos para ela (e este ano não tenho que erguer meus meninos no tuntum para ver a santa. Já passaram de mim). Vou sentir uma saudade danada do meu pai, da minha mãe. As lágrimas vão rolar. Vou agradecer porque um dia a mãe de Deus volveu os olhos para mim. Mas vou pedir perdão também, porque depois fui crescendo e ‘fui esquecendo nossa amizade’.
Belo, como costuma ser tudo que emana dessa pena.
ResponderExcluirOri Fonseca, seu criado.