Johnny Vai à Guerra
Hoje amanheci sem nariz. O mundo se realiza a distâncias sem me dar conta de seus odores. Eu só tenho língua e sonhos. Língua para perceber poucos sabores. Sabores poucos. Sonhos muitos.
(Nos meus devaneios, lembro os tempos em que ficava gripado e não sentia gosto nas coisas que comia, me enfastiava e mamãe ralhava pra eu comer mais um tiquinho. Vem à lembrança, também, aquele início dos anos 80, quando minha amiga Leila Paixão fez porque fez para que eu assistisse “Johnny Vai à Guerra”. Era o grande filme do momento. A trama girava em torno de um soldado americano atingido por um morteiro, na 1ª guerra mundial. Perde o nariz, a boca, os olhos, as pernas, os braços. Não morre. É mantido no hospital como objeto de pesquisa. Algo de aprendizado a ciência deveria obter daquele corpo subtraído de peças, largado sobre a cama. Apenas a consciência se anima sobre o leito estanque daquele hospital. O soldado não pode se comunicar a não ser com ele mesmo, com o oco de si...)
Ficar sem nariz é ruim. A gente fica embotado. Perde-se nas lembranças. É como ficar sozinho. Cheio de buraquinhos permeados de ausências. É como se nos tornássemos um pulverizado opaco vagando ao vento, inerte, mas aquecido, abrasador. Então a gente se engole inteiro e vai pra dentro do eu, fuçar saudades (sem o nariz).
No domingo do Círio, volvi meus pensamentos para meus amigos distantes, sem narizes pra cheirar os cheiros do Pará.
Eu já me bati com esses reveses. Passei muitos Círios fora, por aí, por esses verdes amazônicos. Minha mãe, minha amiga, minha companheira sabia que eu sofria. Era conta certa. Em outubro, onde quer que eu estivesse, podia esperar pelo correio, um mimo. O mais comum deles, um roc-roc que eu ficava roc roc’ando o tempo que desse, pelos cantos com os olhos lacrimejantes até acabar o breu. Certa vez mamãe variou e mandou duas garrafas de Guaraná Garoto (só faltou o pastel folheado de queijo). Superou-se em ousadia, numa outra oportunidade, quando mandou em mãos, lá para as margens do rio Madeira em Rondônia, uma dose generosa de maniçoba. Sabia das minhas privações, minha mãe.
Algumas joinhas do meu séquito passaram, compulsoriamente, o Círio deste ano, longe de Belém. Laila, a professora-poeta, que tanto me ensinou em desprendimento, liberdade e audácia com seus escritos, enfurna-se pelos estirões falhados do Xingu, experimentando os desafios do magistério. Rubem Neto, meu best friend do curso de Geologia e que, um dia desses me regalou (meio sem querer porque esqueceu o disco aqui em casa e aí, já sabe, já era...) com o indefectível Abbey Road em vinil, se bandeou pras bandas da Bahia a prospectar níquel, e por lá ficou o último final de semana, só na vontade de ir na corda. Os dois muito jovens, integrantes da safra de amigos bem novinhos, bem beberes que tenho, que me honram com suas companhias e em noitadas mais animadas, partilham socialisticamente comigo, o último copo da mardita ao jambu.
Vou buscá-los donde estiverem com minha saudade. Leila Paixão, inclusive, que fez porque fez para que eu conhecesse Johnny e depois ergueu-se na tez banhada pelo sol da Sacramenta, ajeitou os óculos redondinhos, aprumou a vista e partiu para conquistar a Holanda.
Hoje amanheci sem o nariz, sem os olhos, sem as pernas, sem os braços. Constatei que 80% dos sabores que percebemos são captados pelo olfato. Mas hoje amanheci sem o nariz. Tô oco por fora, e por dentro só tenho os sonhos e a língua. Os sonhos e a língua. Os sonhos, a língua.
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