Liberdade
Eu estava esperando o ônibus que me leva para a fábrica de manhãzinha, ali na Primeiro de Dezembro. Tenho o costume de, enquanto espero, ler um livro, na parada. E me abstraía com os desconcertantes relatos sobre o tórrido ano de 1968, naquela manhã friinha de céu algodoado.
A mão dela pousou sobre meu ombro, mas não se anunciou em peso, houve um certo assentimento inexplicável naquele contato. Surpresa, não houve, nem combina. A chegada foi assim inesperada, mas permitida, assimilável. Dispôs-se à minha frente como se já me conhecesse de tempos. Disparou a primeira pergunta. Leve. Despretensiosa. Perguntou se eu estava esperando o ônibus. Meio que induzindo um ligeiro apartamento, respondi que sim, assim, com esta única sílaba.
Olhou para o meu livro e me desconcertou com a indagação: “é uma Bíblia?”. No repente, pensei confirmar, mas declinei e respondi que não era não. “Vermelha”, realçou a voz para identificar a cor do livro, e emendou em ritmo cadenciado, quase soletrando a frase estampada na parte superior: “Liberdade”...(o livro que estou lendo desnuda o ano de 1968 nos seus aspectos mais marcantes. Para minha surpresa, é um livro produzido pelo governo, a edição é de distribuição gratuita, de boa escrita e fidelidade histórica. Traz na capa a palavra “liberdade”, grafada em preto para dar um contraste inconteste ao idealismo do vermelho de fundo).
Era uma mulher, já na terceira idade. Nunca a tinha visto por ali. Exibia um rosto vincado, incisivos ausentes, tez oxidada, e uma agilidade estonteante no falar. Usava um chapéu de abas dobradas era dotada de vastas curiosidades.
Acendeu em mim, a chama. Catei cá dentro, algo que refletisse a liberdade. Queria aproveitar a deixa e traçar um papo filosófico já que senti profundidade por parte dela quando deu com a palavra pichada no livro. Se não aparece doido de serventia todo dia pra gente, ia ganhar um tempinho com uma boa prosa até meu ônibus passar.
Mas ela era muito lúcida. Deu sinal dos alinhavos lógicos que volteavam pelo cocuruto, quando percebeu algo de batalhador no meu uniforme. Reconheceu detalhes da minha roupa e me questionou se eu era da Celpa ou Cosanpa. Neguei com a cabeça, e quando fui me adiantar sobre meu destino, ela mudou o rumo e detonou a mais desconfortante pergunta. Quis saber se eu era de alguma igreja.
Aí eu me embananei todo. Aquele impulso matinal vislumbrando a liberdade. Ela procurando a Bíblia em vermelho, percebendo no livro a liberdade... Pouco convincente, assumi que não, que não era de nenhuma igreja. Só que ela bateu na ferida. Dias atrás havia passeado por dentro de mim, procurando alguma fé. Tenho dúvidas.
Ela resumiu a conversa e deixou a questão no ar: “não é de nenhuma igreja, né, mas é bisbilhoteiro?” Claro que não, declarei resoluto, tentando estabelecer a lógica que ela programara para entrelaçar igreja e bisbilhotagens numa manhã de setembro. E ela nem thum pra mim. Deu de ombros e seguiu seu caminho pela calçada. Ainda acompanhei aquele andar despretensioso mirando a estampa da camisa que ela usava. Um arco à altura do ombro com o nome “Roberto Carlos”. Eu cantarolei baixinho “quando eu estou aqui/vivendo este momento lindo”. Só depois, é que reparei que se tratava do jogador, aquele do meião, e não do cantor.
Dei um sorriso e me cobrei porque, por muito tempo, achei que ter liberdade era poder sair por aí de ‘percata’. Liberdade pra mim era não precisar calçar sapatos fechados, me agoniar com dedos espremidos. E nem era. Liberdade talvez sejam breves aconteceres, vulgares bisbilhotices nas manhãs. Encontros, despedidas. Quem sabe?
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