sábado, 26 de fevereiro de 2022

crônica da semana - fale com o motora

 Fale com ele

Há um bom tempo não ando de ônibus. Por causa da pandemia, saio pouco de casa e quando vou ali rapidola, ou tiro no pé, ou chamo um carro de praça. Por isso a surpresa, quando o motorista, ao me ver na calçada esperando o momento de atravessar, buzinou e deu com a mão.

Fazia o primeiro horário do Pedreira-Condor, quando eu usava essa rota para chegar ao trabalho. Era ainda alta madrugada, eu me aviava na versão operário, todo no uniforme, mochila nas costas, vale transporte em mãos. Isso pr’além de três anos atrás. Não esperava que ele me reconhecesse na calçada, no estilo atleta-hipertensão, de tênis, short de fio, camisa do bicola, e alinhado aos protocolos anti Covid. Máscara, vidrinho de álcool na mão. Distância dos outros caminhantes.

Resgatei na memória, um motorista educado, que naquele ainda escuro do dia, nos recebia com uma saudação, era paciente (muitas vezes me esperou quando me via, atrasado, subindo a Pirajá a bom apressar o passo).  Vieram os episódios divertidos que aconteciam durante as viagens, naqueles tempos. Era muito dado, puxava conversa com os passageiros, envolvia o cobrador, todo mundo. Metia o bedelho em tudo. Falava do tempo, da política sindical, de futebol. Relatava passagens do cotidiano, do abafado dos dias. Um caso me chamou a atenção por induzir uma reflexão sobre a mecânica do tempo. Por revelar um certo egoísmo nosso, aquela presunção que nos leva a ter opiniões vãs, desprovidas de argumentos consagrados, baseadas quase que em nossa exclusiva vontade. Um fenômeno do comportamento que se observa aos montes no Brasil de hoje.

Contou ele que, na lida que já se estendia além das 13 horas, pegou um passageiro, e como de costume, o cumprimentou com um ‘boa tarde’. E ficou piririca da vida quando o passageiro o retornou, com um ‘bom dia’, porque, como ainda não tinha almoçado, e para ele ainda era ‘bom dia’. A seguir, naquela viagem a caminho do Ver-o-Peso, cedinho, o motorista fez uma consideração brilhante do caso contestando o passageiro, e alegando que ele não podia contar o tempo com a medida do seu estômago. Continuou especulando: “quer dizer que se ele almoçar só 5 da tarde, até lá ainda vai cumprimentar os outros com um bom dia?”

Eu acho pertinente a observação do motorista, embora haja brecha, sim para um ‘bom dia’, pelo menos até as 6 da tarde, mas essa é outra prosa. O que conta é que não é o costume no horário das refeições que mede as etapas do tempo.

A Terra exibe dois cenários distintos. Um que é iluminado e outro que não é. Estas partes, o dia e a noite, podem ser divididas em cenários menores, como manhã, tarde e madrugada. Mas não exatamente subordinados a atividades humanas como o ato de almoçar (inda mais que tem gente que sequer almoça). Não podemos dizer que é dia só porque trabalhamos no comércio ou andamos de bicicleta pela rua. Muita gente trabalha e anda de bicicleta durante a noite. Não é recomendável, portanto, usar tarefas cotidianas para definir as etapas do tempo.

Regrar as etapas pelas tarefas rotineiras não cola, mas cravar sentimentos, afeições, é até bacana. Lá em nossa viagem de ônibus até o Ver-o-Peso, mandando um papo indispensável com o motora, incluiria um outro segmento para o período não iluminado. Seria noite, madrugada e ‘de manhãnzinha’, que é aquele tempo entre 5 horas e 6 da manhã em que nos encontramos, eu, o dia, e a racionalidade do motorista simpático, bem humorado... paciente...e que depois de uns bons anos, me reconheceu na calçada, buzinou e acenou pra mim.

 

 

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