A carne mais barata do mercado
Tudo
começou com uma pequena e contornável arenga que, ao calor da hora, desandou
para um conflito de honra, besta e inegociável. (Não, nada a ver com a
Ucrânia).
Eu
estava bem na fila do açougue, era o segundo, quando exatamente na direção
oposta, uma senhora formou outra fila, onde ela, logicamente era a pri. Chiei.
Não sem esboçar um ar provocativo ela justificou a outra fila dizendo que
aquela que eu estava era a da prioridade e a dela, não. O atendimento estava sendo
feito ora aqui, ora ali. Senilmente aquiesci.
Quando
da minha vez, coincidiu de nos encostarmos juntos no balcão e fazermos, ao
mesmo tempo, o pedido. Eu, meio quilo de picadinho. Ela, dois quilos de alcatra
cortada em bifes milimetricamente e adelgaçados. O rapaz do atendimento deu
preferência pra ela e aí o inferno da convivência, a partilha indecorosa do
espaço, o deboche e o estranhamento social grassaram. Bem dizer, fui humilhado,
afinal comprar (e pagar os olhos da cara) carne em boa quantidade e ainda em
bifinhos graciosos é arte para seres socialmente superiores. E ela fez questão
de demonstrar isso ao fazer o pedido, ser atendida de prima, e naquele instante
me lançar um olhar elevado, repressor, compressor. Éraste, me senti humilhado
ali com minha demanda de meio quilinho de carne de segunda picada, ante aquela
ostentação. Imediatamente reagi, mantive a quantidade, mas alterei a qualidade,
queria agora o picadinho de carne de primeira, uns tostões a mais, e uma reação
que não acabaria ali.
Daquele
instante em diante libertei o que de mais leviano, irracional e destrambelhado
existe dentro de mim. Fiz juras de vingança, revide à altura. Por agora não, mas
deixa eu ver... espera chegar o décimo que vou fazer uma extravagância. Também
vou comprar dois quilos de alcatra. E vai ser logo na primeira parcela. Na
minha jura, consta marcar a fisionomia, contar direitinho o dia que a mulher
vai ao açougue, mirar o atendente, gravar lugar bem de confronte a ela... Quero
programar um momento de glória, aquele em que vou dar a volta. Vamos emparelhar
de novo no balcão e quando ela pedir a parte dela, peço também a minha. “Também
quero dois quilos de alcatra cortados em bifinhos jeitosinhos”, anunciarei soberbo,
altaneiro. Cruzaremos os olhares e do meu olhar vingativo sairá fogo, calor,
cianeto, vapores cáusticos, pestes, sezões e o mais refinado veneno. Mesmo que
isso me custe um tutu daqueles.
Como
diria o Belchior, “isso é somente uma canção”. Na real a vida é bem mais
dramática e nos dá pouca chance de reação.
O que é
certo é que a cada ida ao supermercado, hoje, uma depressão sem par me abate.
Escacavio modos e jeitos para entender como estamos varando. Aquela mulher que
arrematou quase 90 Reais em bifinhos é uma exclusividade. Uma indecente
exceção. O que vemos mesmo, ante nossos olhos lacrimejantes é um meio quilinho
disso, um meio daquilo. Isso sem falar na agressão que são os pés de galinha e
as bandejas de osso vendidas sem pudor.
Não fiz
jura para a mulher que, é verdade, me olhou com um desdém sem fim, quando comprou
aquela carne aquilatada. Saí do açougue com meu embrulhinho e a cabeça
martelando.
Saí pensando
no meu país, na fome que nos espreita. Refleti sobre os esforços que fazemos
para pôr a mesa todos os dias em casa, no entanto, me ocorreu que até este
esforço está esmigalhado. As oportunidades de trabalho são mínimas. Décimo
terceiro para um revide irracional é para poucos.
A carne
mais barata do mercado não está no açougue.
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