Pode entrar pelo chagão
Vagávamos
ansiosos pelas ruas margeadas com pedras de lioz, ali pelos adiantes do centro
de Belém, eu e meu compadre José Miguel Alves. Contávamos os dias para o
lançamento de um livro que publicaríamos em parceria. Distribuímos material de
divulgação nos jornais que ainda mantinham suas redações no âmago do comércio e
trançávamos, depois da missão cumprida, um papo cabeça sobre os conflitos da
linguagem. Nessa época não sei em que eu me enfiava, mas era bestão que só
vendo. Metido a saber da estética, da genética e das artes. Não tinha um isso que
periquito roesse, mas me enchia de enxerimentos e me dava como um crítico do
fraseado. Gabava-me de ser gramatiqueiro. Expressava sem pena, meu
descontentamento ante construções do tipo “a gente fomos pro jogo” ou “traz
água pra mim beber”. Taxava essas elaborações como um erro. Um desrespeito ao
Paschoal Cegalla.
Meu
compadre Miguel, à época concluindo a graduação no curso de Letras, com aquela
paciência professoral, e já se anunciando nesse jeitinho persuasivo de mestre,
que ele tão bem pratica hoje; em tempo, me libertou daqueles pensamentos
malignos e me apresentou às maravilhosas traquinagens linguísticas. Fez-me
perceber os fenômenos, as mais variadas arquiteturas que o enunciado assume e
que, longe do juízo de estar certo ou errado, é pelo uso instaurado nos nossos
dias, a revelação da língua viva. “Inculta e bela”.
E eis
que semana passada escrevi aqui sobre uma farinha que estrala no dente. Poderia
ser um enunciado estralado. Entretanto, o zelo residual, insensível, casmurro e
imponderável, ou mesmo o medo de ser incompreendido, me fez marcar o termo. Que
coisa. Que fraquejada. Preciso bancar a naturalidade dos dizeres sem os
sinalizadores, sem tirar a bronca, sem as aspas para disfarçar.
Resolvi
então me penitenciar hoje explorando esta entidade, este marco do cenário urbano
que é o chagão. Traçado tão real e verdadeiro, quanto dissimulado, quando
queremos dar um nome a ele.Temos vergonha de chamar o chagão de chagão.
É
estrutura ainda bem presente no ordenamento de casas e vilinhas da cidade. Trata-se
de um espaço, que pelo comum, separa casas e terrenos de proprietários
diferentes, disposto lateralmente às habitações e que serve como acesso
alternativo ao imóvel (e afetivo: quando a gente entra pelo chagão, já vara na
cozinha da vizinha).
Há uns
bons anos, meus colegas de rua, por antipatia ao termo, e não encontrando outra
forma de apelidarem este segmento do terreno, por aproximação, resolveram
chamá-lo de saguão. Penso que não cabe.
Eu aprecio
é a versão libertária. Chagão mesmo. É quase imagem, feição. Arte explicável
pela correlação. Se a gente entender este eixo longitudinal (que nos faz, da
calçada, já chegar à cozinha para um cafezinho), ser uma grande fissura na pele
ordenada da rua, podemos considerá-la como sendo um rasgo, uma chaga de
dimensões mapeáveis. Um chagão. Protegido por um portãozinho de trançado débil,
ladeado de estacas farpadas, com um cachorrinho que late em agudíssimo alarde
quando a gente bate palmas lá da frente, pedindo a atenção d’o de casa.
Ainda
me acossa o cartesianismo da gramática. O que torna é que se a gente critica um
deslize aqui, acolá, é certo: escorregamos também adiante. É humano. Não temos
de que nos envergonhar dos enunciados abonados pelo uso.
Se
zanzar pela Pedreira, passa aqui e entra pelo chagão. Se
não tiver um cafezinho, já que hoje, tudo está pela hora da morte, a gente
entorna um capim santo.
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