sábado, 12 de março de 2022

crônica da semana - meu pé esquerdo

 Meu pé esquerdo

Esta Pedreira querida me tem de um tudo. É um bairro completo do hio ao chio. Sai da Pedreira para cuidar das precisões, quem quer. Aqui, de tudo há. Nesse sábado próximo passado, fugi do isolamento e fui atrás de uma farinha da boa, daquela que ‘estrala’ no dente, lá na feira. No caminho, aqui e ali, dei uma guinada para conferir as ofertas dos mais variados produtos disponíveis no comércio, que se espalha pelo estirão de pista tripla da Pedro Miranda. Entrei numa loja de roupas. Peças boas, de acabamento no jeito, preços em conta. Reinei comprar umas coisinhas. Na mesma pisada desisti. Não vou pras partes faz tempo. Não tenho precisão de roupas novas. Taí, bem que dura que só comigo é roupa. Dia desses me surpreendi com uma foto que achei nas redes sociais, de um encontro com escritores, na praça da República, em que estou com uma bermuda que até hoje me serve. A foto é de 2012. Dez anos passados e a bermuda tá ali, na canforina, boinha da silva. Sem um isso de desbotado. E praticamente no desuso, nesses anos de pandemia. Agora que tá amainando o contágio e o medo passando, calha d’eu me sentir destreinado dos passeios... Quer dizer que tem mais tempo de serventia, a bichinha, pela frente.

Além das esquivas no vírus, uma razão, diria, ideológica, me faz abicorar-me na trincheira: nossa guerra doméstica e diária. Sempre fui de esquerda. Daqueles de usar embornal, roupa por passar e barba desgrenhada. Em grupos de igreja, movimento estudantil, práticas sindicais, sempre privilegiei, ante a mais rica sedução, a causa dos fracos e oprimidos. E achava que todas as pessoas com quem me relacionava pensavam igual. Mas quando! Como diria uma pensadora que conheci tempos outros e que deixou saudade: ledo engano.

Hoje, atento ao front, enquanto exercito estratégias de convivência pautadas em vultosas doses de democracia (para não me deixar escorregar à hipocrisia), cuido. Porque vem da parte dos dizeres de mamãe e também das prosas populares: boa romaria faz...

Tá é remoso o troço. A tal polarização não tem mais eira nem beira. A ciência foi tragada pelo vendaval de opiniões ‘colteanas’, e os mais bestiais instintos antes socialmente represados, nos limbos e inconscientes, afloraram e, conscientemente, com justificativas estúpidas estão avançando selvagens sobre a razão, corpos indefesos e pressionando nossa paciência.

Não fosse trágico, o cenário seria risível. Pra espairecer, tem aquela história do papo de bar em que um parça meu, doutor das artes matemáticas, na descontração da tarde e mirando o pôr do sol, afirmou que a partir do raio da Terra e da aplicação do teorema de Pitágoras, seria possível calcular a distância da mesa em que estava com a turma, tomando umas no happy hour, até a linha do horizonte. Adiantou que tudo se resolvia achando o valor de um dos catetos. Logo tomou foi um susto ao ser confrontado por um dos presentes, tido e havido como ser do bem, que o alfinetou dizendo que aquele resultado se dava por causa de uma opinião dele, do meu parça que tem doutorado, diga-se, e que nada garante que a Terra tenha um cateto ou um raio. Ora, raio! Nem o Pitágoras!

Éraste! Chega dá um arrepio.

Entrincheirado, o que me resta é explorar esta Pedreira que me entontece, protegido pelas mangueiras que dominam os canteiros das três pistas. Esta caminhada, quebrando aqui, acolá, para dar atenção a um representante do comércio varejista, talvez diga algo sobre a destreza do meu pé esquerdo.

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