sábado, 5 de fevereiro de 2022

crônica da semana- inverno amazônico

 Inverno amazônico

Cravadinho está na folhinha do ano, esse final de semana próximo passado. Bem no finzinho do mês de janeiro foi que o inverno amazônico veio dar o ar da sua graça. Desde dezembro andava acanhado, dando vaga a um sol tinindo de quente e diário. Fez um ensaio no último dia do ano de 2021, mas foi só pra empastelar minha caminhada matinal, com aquele chuvisco que enxombra a roupa da gente. De lá a cá, foi um chove não molha indisposto, indeciso. E dê-se ciência e registre-se. A chuva começou por volta das três da tarde de sexta, dia 28 de janeiro, e por aí em diante se manteve alternando em chuva grossa, chuva fina, céu de tez algodoada até o raiar do domingo. Nos entremeios a maré encheu, a água invadiu casas, a turma da bandalha tomou banho e executou mergulhos acrobáticos nos canais que se estendem em serpenteios pelas planícies de Belém.

Teclo e seguro o tipo no propósito de gravar esta informação. Porque é dado ao cronista, pôr o dedo no tempo certo com os dados e as notas que dão valência aos dias e as noites. Sem a abstração romantizada ou a opinião de zap. De olho no pluviômetro e nos alagados da cidade para validar a chegada dela, da chuva, não sei se com beira. Sei apenas que ocorreu com uma intensidade até então não experimentada, nesse final de semana próximo passado, o que fez eu me isolar radicalmente entre os lençóis de rede, pôr meia e tomar chá quentinho nos avançados da madrugada.

Deu-se que depois de mais de 24 horas de reclusão, embrulhado dos pés a cabeça no meu pano de imaginar de rede, resolvi dar um rolé. Saí de casa ainda sob uma lenga-lenga de chuvisco enjoada, e cambei para a Marquês. Depois de muito jeito de corpo para desviar dos monturos de lixo distribuídos ao longo da via parque, me aprumei no balcão de um bar e pedi uma cervejinha para espairecer. Aí foi que o inverno amazônico se fez mais sentido pra mim. Éraste! Nunca pensei na minha vida, pedir uma cerveja ao garçom, nem tão gelada. A primeira que ele trouxe foi só frustração. Congelou na hora e não espaireci foi nada. Pedi outra, menos fria, que desse pra aproveitar o caldo.

Belém é assim, a temperatura não pode cair para 24 graus que a cerveja congela.

Não disse que fui ao bar para espairecer? Receber as energias de um final de tarde pedreirense, refletir sobre a vida com os cotovelos sobre o granito do balcão de um bar? Constatei que muita gente pensa que nem eu. É o momento da elaboração de conceitos, de refinamento da alma. Ao meu lado, duas garotas traçavam um diálogo moderno, avançado, no rumo da quebra de paradigmas, de preconceitos. Eu tinha que ouvir, pois estavam em uma mesa bem pertinho de mim, reinei até para não dar uns pitacos. A atendente pediu comprovante de vacina, me senti protegido, a outra cerveja veio ‘mais quente’, não congelou e não houvesse chegado um casal em atitudes que me chamaram a atenção, teria iniciado meu processo criativo de teorias revolucionárias em função do grau etílico ascendendo em mim. O casal se encontrou na entrada do bar e antes de entrar, os dois se cumprimentaram e se beijaram um beijo vendado. Estavam de máscara.

Ao mesmo tempo, uma das garotas da mesa perto de mim, tomou a mão da acompanhante e iniciou uma oração redentora. A outra se desmanchou em lágrimas. Tudo o que era moderno e libertário sucumbiu a um transe espiritual e soluços.

Refleti: é... o inverno amazônico chegou. Céu plúmbeo, lenga-lenga, cerveja congelando a 24 graus. Decidi voltar à meia e ao meu pano de imaginar.

 

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