Inverno amazônico
Cravadinho
está na folhinha do ano, esse final de semana próximo passado. Bem no finzinho
do mês de janeiro foi que o inverno amazônico veio dar o ar da sua graça. Desde
dezembro andava acanhado, dando vaga a um sol tinindo de quente e diário. Fez
um ensaio no último dia do ano de 2021, mas foi só pra empastelar minha
caminhada matinal, com aquele chuvisco que enxombra a roupa da gente. De lá a
cá, foi um chove não molha indisposto, indeciso. E dê-se ciência e registre-se.
A chuva começou por volta das três da tarde de sexta, dia 28 de janeiro, e por
aí em diante se manteve alternando em chuva grossa, chuva fina, céu de tez
algodoada até o raiar do domingo. Nos entremeios a maré encheu, a água invadiu
casas, a turma da bandalha tomou banho e executou mergulhos acrobáticos nos
canais que se estendem em serpenteios pelas planícies de Belém.
Teclo e
seguro o tipo no propósito de gravar esta informação. Porque é dado ao
cronista, pôr o dedo no tempo certo com os dados e as notas que dão valência aos
dias e as noites. Sem a abstração romantizada ou a opinião de zap. De olho no pluviômetro
e nos alagados da cidade para validar a chegada dela, da chuva, não sei se com
beira. Sei apenas que ocorreu com uma intensidade até então não experimentada, nesse
final de semana próximo passado, o que fez eu me isolar radicalmente entre os
lençóis de rede, pôr meia e tomar chá quentinho nos avançados da madrugada.
Deu-se
que depois de mais de 24 horas de reclusão, embrulhado dos pés a cabeça no meu
pano de imaginar de rede, resolvi dar um rolé. Saí de casa ainda sob uma
lenga-lenga de chuvisco enjoada, e cambei para a Marquês. Depois de muito jeito
de corpo para desviar dos monturos de lixo distribuídos ao longo da via parque,
me aprumei no balcão de um bar e pedi uma cervejinha para espairecer. Aí foi
que o inverno amazônico se fez mais sentido pra mim. Éraste! Nunca pensei na
minha vida, pedir uma cerveja ao garçom, nem tão gelada. A primeira que ele
trouxe foi só frustração. Congelou na hora e não espaireci foi nada. Pedi
outra, menos fria, que desse pra aproveitar o caldo.
Belém é
assim, a temperatura não pode cair para 24 graus que a cerveja congela.
Não
disse que fui ao bar para espairecer? Receber as energias de um final de tarde
pedreirense, refletir sobre a vida com os cotovelos sobre o granito do balcão
de um bar? Constatei que muita gente pensa que nem eu. É o momento da
elaboração de conceitos, de refinamento da alma. Ao meu lado, duas garotas
traçavam um diálogo moderno, avançado, no rumo da quebra de paradigmas, de
preconceitos. Eu tinha que ouvir, pois estavam em uma mesa bem pertinho de mim,
reinei até para não dar uns pitacos. A atendente pediu comprovante de vacina,
me senti protegido, a outra cerveja veio ‘mais quente’, não congelou e não
houvesse chegado um casal em atitudes que me chamaram a atenção, teria iniciado
meu processo criativo de teorias revolucionárias em função do grau etílico
ascendendo em mim. O casal se encontrou na entrada do bar e antes de entrar, os
dois se cumprimentaram e se beijaram um beijo vendado. Estavam de máscara.
Ao
mesmo tempo, uma das garotas da mesa perto de mim, tomou a mão da acompanhante
e iniciou uma oração redentora. A outra se desmanchou em lágrimas. Tudo o que
era moderno e libertário sucumbiu a um transe espiritual e soluços.
Refleti:
é... o inverno amazônico chegou. Céu plúmbeo, lenga-lenga, cerveja congelando a
24 graus. Decidi voltar à meia e ao meu pano de imaginar.
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