A mesa, a rede, o rádio
Quando
as crianças eram pequenas, tadinhas, foi-não-foi eram convidadas para o
diálogo. Ocorria após o almoço quando estávamos todos ao redor da mesa. Podia
ser uma celebração, o anúncio de uma campanha doméstica, cobranças disso ou daquilo,
trivialidades, notícias da Vila dos Cabanos, o estado atual das contas, dos
teres e dos haveres da família. Os temas eram variados. A sessão durou que só,
as crianças cresceram e a gente ali, ao redor da mesa, pondo as cartas.
Ah, a
mesa:
É o
nosso bem material mais antigo. Tem muita história pra contar. Veio de Macapá.
Compramos o conjunto mesa com quatro cadeiras de madeira, direto dos detentos
de uma unidade do sistema penal que tinha na estrada de Santana e que ficava em
frente ao conjunto em que morávamos. Os internos tinham muitas produções e
havia um dia de venda. Escolhemos a arte moveleira, mas tinha muita coisa
bacana lá, boa de qualidade e preço. Quando embarcamos de volta para Belém, eu
e minha companheira, que firmamos compromisso, ali, na beira do Amazonas e
iniciamos a vida com uma rede e um rádio, singramos as águas de retorno já com
uma rede, um rádio e a mesa com quatro cadeiras. Foi um bate revira e volta
rapidola em Belém e de novo embarcamos a mesa. Dessa vez para a Vila dos
Cabanos. Em Barcarena, foi palco de inúmeros diálogos.
O tempo
passou, as crianças cresceram. Veio a Universidade e optamos vir para Belém.
Procuramos lugar para morar e em tempos de outros ares, me veio a idéia de ir
pra casa nova com a mobília renovada. Compraríamos outro conjunto de
mesa-cadeiras...Pra quê. Fechou o tempo. Instalou-se a crise. Choros pelos
cantos. Silêncios sentidos. Conversas atravessadas, ausência total de diálogo
aberto. Havia muito afeto envolvido naquela relação que construímos. Ao redor
daquela mesa uma vida toda se definiu, por vezes envolta em dramas, outras em
alegrias sem medidas. Em volta dela, argumentamos a vida com poesia, vinho,
música. Nos perdíamos por horas na abstração dos saraus e quando nos erguíamos
da cadeira, as pernas estavam todas marcadas porque o assento não era de uma
peça contínua. Aquela era a marca de nossa abnegação, daquele anuviamento por
estarmos juntos, de um jeito tal que nem percebíamos o desconforto, a
vermelhidão e uma discreta ardência nas coxas. À mesa se desenvolvia a sessão
de diálogo, a campanha diária do dever de casa, o jogo de montar, a arte da
datilografia e, sim, sim, o repasto frugal da família.
Mudei
que mudei de idéia.
Acionamos
o mais aquilatado artista da terra, ele lixou, deu uns reapertos, pintou e
embelezou de uma forma espetacular nosso móvel. Ornou de cores vivas e
reluzentes nossa joinha. E lá s’está a zinha com as quatro cadeiras de assento
em peças separadas (agora, suportadas por almofadas, para não machucar mais as
pernas), na sala de jantar, em destaque, deixa estar, deixa estar... em nosso
lar já beirando os 29 anos. Desde lá do Cabralzinho, em Macapá.
Faço
planos, para daqui a alguns anos, nossa mesa seja ponto de apoio para a netinha
Petra, quando já se aviando nas missões e vier passar uns dias com os avós, possa
fazer o dever de casa com concentração e esmero, e, depois das obrigações,
penso em convidá-la à velha e boa sessão de diálogo, onde nos alinharemos aos
traçados, às memórias, às reflexões e a toda a vasta pauta afetiva que a nossa
mesa de madeira com quatro cadeiras guarda em si desde que chegou aqui, em
encantadora descida pelo Amazonas, de par com a rede... o rádio.
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