Vinte e cinco
anos
O caminho era um
alagado raso, com algumas elevações que não chegavam a ser uma porção de
terreno seco. Formavam apenas pequenos barrancos úmidos e lisos. Andamos por
aproximadamente dez minutos até dar com o muro. Do outro lado a indústria, o
trabalho assalariado, carteira de benefícios, plano de saúde, férias, décimo
terceiro...
Não era um muro
alto. Não afrontava. Bastava-se como símbolo, como um eficiente segregador
social. Não se exibia imponente. Mostrava até um limo bem desenvolvido na base
e um acintoso empeno no rumo que se estirava. Como se fosse uma barreira em
desuso, abandonada. Era, no entanto, um argumento fortíssimo para explicar a
distância entre as gentes tão iguais.
Por aqueles dias
eu já me batia nas duras batalhas sindicais produzidas pelas mudanças nas
relações de trabalho. Procurava entender
a reestruturação produtiva, a terceirização. Identificava a submissão à
doutrina da qualidade total, à pressão por um operário multitudo.
Naquele dia em
que caminhei pelo baixio alagado e varei no pé do muro, estava visitando um
amigo. Ele faz parte de uma comunidade tradicional, remanescente da Missão
Gibirié, às margens do rio Pará.
Por aquela
época, reconhecia a notória articulação que reinava nos meios empresariais, e
me indignava com uma camada da organização operária que admitia a possibilidade
de adequação aos novos modelos laborais.
Não era a minha
bandeira, um alinhamento com aquela guinada para a precarização do trabalho.
Defendia a manutenção dos direitos, conquistas, progressões salariais. O tempo
era de definições. Um dos argumentos que se utilizava nos fóruns de discussão em
defesa de um alinhamento, era de que nós, trabalhadores que estávamos do lado
de dentro dos muros, nas grandes corporações, éramos privilegiados, fazíamos
parte de uma elite operária. Esta cantilena, até hoje ainda ecoa. Versa que
reduzindo direitos, se cria empregos.
Fui ver o amigo,
ali pelos arredores da Vila do Conde. Minha visita aconteceu dias depois de meu
amigo ter perdido todo o investimento que tinha. Não vivia do trabalho formal.
Por último, apostava na criação de peixes em cativeiro. Estava com os tanques
minando de tilápia, quando a maré grande invadiu a margem do rio Pará e levou
pra longe toda a criação. Ao contrário do que se possa pensar, meu amigo não
estava triste. Estava pronto pra outra. Deixou o almoço encaminhado e me
convidou para dar uma volta pela planície molhada e verificar os estragos. No
final da caminhada, o terreno era truncado pelo muro da empresa. Uma guarita,
mais adiante impedia o acesso. O mundo dele terminava ali ao pé do muro.
Paramos ante o
muro e por uns instantes eu me senti culpado de ver meu amigo ali, sem emprego,
sem esperança, sem a criação de tilápia. Bateu um banzo em pensar que eu vivia
dos benefícios que haviam do outro lado do muro. Ele mesmo deixou escapar que
considerava aquele ambiente além, um lugar de privilegiados e que ele embora,
tantos anos tentando, jamais conseguiu uma vaga do outro lado.
Hoje, exatamente
hoje, completo 25 anos de trabalho na indústria de Barcarena. Tantas histórias,
tantas lutas e conquistas, prazeres pessoais, conquistas sindicais.
Continuo
acreditando que o certo é a preservação dos direitos, a carteira assinada, o pacote
de benefícios, salários justos. Acredito na luta incessante por melhores
condições de trabalho. Mesmo porque, a aplicação do contrário, não mudou nada.
Meu amigo continua do lado de fora do muro.
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