Homem de pôr
café
Até aquele
domingo só havia entrado numa igreja porque minha mãe, certa vez, cismou de eu,
ainda adolescente, apadrinhar a filha de uma freguesa dela. Obviamente que o
arranjo resultou numa relação de compadrio fracassada e depois, reciprocamente
esquecida.
Eis que no domingo,
dentro da programação do encontro, ocorreria a celebração da Eucaristia. Corri
e revelei aos coordenadores que não era católico praticante, não lembrava a
única vez que tinha participado de uma missa, sequer carregava o abono da
Primeira Comunhão. Reconheci que não era merecedor de celebrar com os outros
naquele domingo. Celebrei. Fiz a confissão com o Padre Lourenço, fui absolvido
e recebi conselhos do Bertolusso. Naquele dia aconteceu a minha Primeira
Comunhão.
A missa encerrava
três dias de reflexões contidos no encontro anual de jovens da Escola Salesiana
do Trabalho. O encontro avalizava os garotos a ingressarem no Movimento
Caminhada, grupo de ação pastoral mantido pela Escola. A reunião se realizava
na casa dos padres em Mosqueiro e na volta para Belém, uma recepção cheia de
emoção nos aguardava. Todo o cenário concorria para um arrebatamento, um êxtase
quase incontrolável, uma explosão de fé. O encontro que dava início à nossa caminhada
era como se fosse uma fonte de múltiplas energias, manancial de esperanças,
águas puras e santas das quais nos nutríamos de força e coragem para mudar o
mundo.
Mas foi a conta.
Quando voltei para Belém, pensei já ser santo. Na recepção, logo dei um carão
na minha família, porque viviam na perdição; nos dias seguintes, virei-me
contra os moleques da rua; me isolei dos colegas da Escola Técnica. Estava
purificado e não podia correr o risco de me perder de novo pelos escuros do
mundo. Alguém que me conhecesse, arriscaria dizer que eu tinha ficado bilé da
cuca. Era quase um fanático. Um fundamentalista cristão edificado em três dias
de retiro.
Não aconteceu o
mesmo com os outros meninos que fizeram o encontro comigo, porque eles já eram
maceteados, viviam a realidade de uma escola religiosa. Nada do que ouviram ou
fizeram no encontro, era novidade para eles. Para mim, sim. Não era aluno
salesiano, nem de longe íntimo da fé e dos ritos da igreja. Quando me vi
naquele fim de semana, minado de informações e doutrinas nunca experimentadas,
me impressionei.
Logo no início
do isolamento social, fui liberado de fazer o café aqui em casa. O coletivo não
aprovou minhas experiências. Passados quatro meses, fui autorizado a inventar de
novo. Todo dia faço de um jeito ou de uma composição diferente e depois
pergunto pra turma se acertei no sabor. Não sei deixar panela no fogo sem
assistência, até concluir o processo, fico em cima. Observo todos os fenômenos
que acontecem. O aquecimento da água, a subida das primeiras bolhas, a reação
de solubilização quando a gente acrescenta açúcar, a evolução da temperatura
quando a gente não coloca açúcar, a dissolução do pó sobre a água e da água
sobre o pó. Enquanto preparo o café, resgato um dos enunciados mais sublimes da
Física: o Princípio da Incerteza.
Até aquele
domingo nunca tinha entrado numa igreja de vontade própria. Não imaginava o
peso de uma conversão. Era um sereno rapazinho de pouca fé e de prudentes
incertezas, como, mais tranquilamente, hoje me sinto. Sei hoje que nada é
determinadamente absoluto, santo ou isento, como, durante minha caminhada, me
fizeram acreditar, os meninos maceteados que fizeram um encontro de três dias
comigo, na casa dos padres, em Mosqueiro.
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