Ou
o siso ou o bago de farinha
A
Pedreira foi um dos primeiros, senão o primeiro bairro a abrigar profissionais
da medicina popular. Ainda hoje estão ativos consultórios que fazem exames,
administram terapias, atendem algumas especialidades; e que praticam preços que
o pobre, na hora do aperreio, pode pagar. Já fui useiro e vezeiro destes
atendimentos. Quando não conseguia ficha no centro três (o que até hoje é
difícil pacas), o jeito era recorrer aos atendimentos médicos do povo.
Há
muito tempo, muito tempo mesmo, quando eu era moleque e não atinava para os
cuidados com os dentes, tive que recorrer a um dentista que ficou famoso por
aqui. Atendia ali, na Pedro Miranda próximo à Humaitá. Fazia o que podia e o que
não podia pela comunidade. O atendimento era baratinho, tanto que denominamos o
lugar de ‘o dentista de dez tostões’. Um detalhe marcava aquele consultório de
forma muito expressiva. Entre os profissionais que atendiam por lá, havia um
dentista negro. E por aí a gente tira. A reação dos pacientes era diversa. Uns
o buscavam por empatia, outros se negavam a ser atendidos por ele. Naquele
tempo o preconceito se cercava de subterfúgios, de desculpinhas. Mas a simpatia
também batia forte, se verdadeira. O certo é que, na minha vida toda, foi o único
odontólogo negro que vi em atividade no meio. Para mim ele era o cara. Me
afeiçoei. Fiz tratamento com ele e tive um atendimento de prima, pagando aqueles
dez tostões. Os anos se passaram, o consultório dentário baratinho desapareceu
da Pedreira e eu não tive mais dor de dente.
Até
aparecer o tal do siso.
Deus
me livre e guarde. Tava era pra correr doido com este dente, nos últimos
tempos. Parecia um predestinado maldito. Desde o momento que anunciou que
estava nascendo, veio trazendo desconforto, dor e sofrimento. É o fona a dar as
graças na nossa arcada dentária, mas, despontou, e passou a ser o pri nas
preocupações. Dentre as inquietações de tirar o tino e o juízo, a farinha
baguda em inquestionável destaque. Quando batia lá, eu via estrela.
A
situação chegou a um ponto tal que, ou tirava o siso, ou eu deixava de comer
farinha.
Outras
restrições estavam sendo impostas por este torturador cálcico. Comer aquele
suculento churrasco me era uma odisséia. Um fiapinho reliquiar que se postasse
na fronteira do último molar, me emboloava o juízo e me forçava a
contorcionismos espetaculares com o fio dental para poder recuperá-lo. E haja
machucado, e haja inchaço, e haja inflamação.
Não
é procedimento que a gente faça sem que antes recorra a um pelo-sinal e a uma
dose robusta de fé. Tirar o siso é coisa bruta. O cirurgião além da perícia, há
de ter iniciação nos mistérios da alma para evitar, com um bom papo, talento e
sensibilidade, que o paciente levante e saia cambalhotando dali para nunca mais.
Desta
experiência, uma constatação: a anestesia foi a maior invenção da humanidade.
Não dói nada.
O
melhor desfecho: uma vida melhor longe das dores diárias.
E
a dica para um Natal feliz: Ao contrário do desejado botijão de gás, aceito de
presente, uns três litros de farinha, daquela bem baguda.
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