Calor
de correr doido
Desci
a calha do igarapé um bom estirão até chegar no pé do barranco. Nem sinal de
água. Lugar mais seco. Caminhei outro pedaço à montante. Lugar mais limpo.
Voltei e aprumei para baixo. Depois de uma caminhada rápida à jusante, um açaizal
com viço tímido aqui, uma discreta umidade no solo, mais adiante, eram bons
sinais. Quem diria. Quando estivemos no mesmo local, pelo início do ano, a água
cobria um homem taludo todinho e ainda sobrava.
A
turma ficou lá em cima, no terreiro arborizado do sítio, ajeitando local para
armar os barracos, que não fosse muito longe da linha-base, e que ainda ficasse
numa ponta de mata, mais abrigado do sol e mais fresquinho, porque o calor tava
de correr doido.
Voltei
já com o local definido para cavarmos um poço. O colono até tinha água, mas o
poço dele era no alto, de grande profundidade e com a água pouca certa para a
casa. Minha equipe contava com mais de 10 pessoas, precisávamos cozinhar, tomar
banho, lavar a louça... a demanda era alta. A experiência e algum conhecimento
básico me adiantavam que teríamos melhor oferta de água se abríssemos poços na
parte mais baixa no leito do igarapé, no talvegue, como diriam os iniciados.
Com
as estratégias armadas, a turma tratou de correr atrás. Quem era da montagem do
barraco, ganhou o mato atrás de varas linheiras, palha para a cobertura e
enviras para as amarrações. Os prospectores de água saíram a abrir caminho mais
curto para o igarapé, munidos de pá, chibanca, baldes e corda. Eu me ajeitei
ali pela varanda do colono, armei a parafernália do rádio e procurei contato
com minha base para dar o resultado da campanha naquele dia. O dono da terra me
acolheu com simpatia. Enquanto trocávamos uma prosa explicando o meu objetivo
ali, dei a reparar naquela família. Não eram daqui. Eram galegos, aloirados,
grandalhões. Contei duas mocinhas, já formadas, olhos verdes, caladas e
reclusas. A mãe, dava voltas pela casa e falava baixinho, parece que sozinha,
mas alguém da família sempre ouvia o que ela dizia e devolvia uma palavra de
volta. Na porta da frente do casebre, um molecote sardento, vermelhinho de sol,
sentado no batente, torturava um embuá retirando dele as perninhas, a punhados.
Tive a impressão que também apartava o bichinho e comia os pedacinhos
mastigando só com os dentes da frente, com ineficaz discrição. O pai, aparentava
ser mais velho que verdadeiramente era. Contou que chegara à Transamazônica no
final da década de 70, vindo de muita necessidade e regime de quase escravidão
nas terras que dividem Paraná e São Paulo. Tinha mais dois homens, que já tinham
mulher e filhos, e moravam afastados. Ajudavam tomando conta da plantação de
cacau e do pequeno rebanho de nelores.
Viviam
sem apoio nenhum do governo. Abrimos um ramal e eles retiravam a produção,
aproveitando nossa carona. Antes, tiravam a colheita no lombo de burro. A
família era o retrato da política rural implantada pela ditadura na Amazônia.
Era novembro. Mês menos chuvoso do ano. E se para nós, o calor era de correr
doido, avalie pro menino vermelhinho que comia embuá.
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