O Santo dos
pobres
Um violão
Giannini Trovador. Vinte e seis exemplares do Asterix, que representavam até
então, a coleção completa dos episódios criados pelos geniais franceses René
Goscinny e Albert Urdezo. Um Pau de Chuva, instrumento percussivo que arremeda
o som de água caindo, originário dos Andes chilenos e que comprei, numa
exposição, como sendo artesanato dos Cintas-Largas. Uma caixa com muitos
quadrinhos. A linhagem inteiriçada dos cartunistas paulistanos. Revista Circo.
Chiclete com Banana. Geraldão. Níquel Náusea. Piratas do Tietê; De carona, a
vovozinha revista MAD, já nos estertores, fazendo o contraponto; e uma pilha de
PQP que mamãe mandava pra mim, todo mês. Somando no acervo, os primeiros números
de O Planeta Diário e Casseta e Planeta. Noutra caixa, as aquisições capa dura,
feitas junto ao Círculo do Livro e também adquiridas na livraria da,
revolucionária, Rose. Sartre. Veríssimos, muitos Veríssimos e as minhas, até
hoje, iluminações literárias, Zero e Feliz Ano Velho. Na mala, uns vinis
‘emprestados’ de Mercedes Sosa, Zé Geraldo, Ana Belém, Maria Betânia...e
preciosas amostras de cassiterita, columbita, topázio, quartzo-dente-de-cão,
quartzo rosa, uma fagulhinha, quase invisível de diamante industrial, meus
quase nada de vestir, um frasco de Contouré e...só. Esta era a minha
bagagem franciscana quando embarquei em Porto velho, de volta para Belém, num
dia 4 de outubro, como o de hoje. Dia de São Francisco de Assis.
Operou um
milagre, o Santo dos Pobres, naquele dia. Depois de quatro anos longe, estava
difícil de voltar. Uma greve poderosíssima dos aeronautas tirou do ar uma leva
de aviões. Os vôos liberados eram um aqui, outro ali. Esta situação fez com
que, naquela terceira vez, eu me visse deixando Porto Velho sem ninguém para me
dar um tiauzinho, antes do embarque. Estava sozinho. Mas deixei estar, não
queria incomodar os Borges Guimarães, a minha família rondoniense, com mais uma
tentativa. Antes, nas duas incursões, toda a galera. Lencinho branco de
despedida, lembrancinhas, emoções, saudades antecipadas, e, olha só, os vôos
foram cancelados. No dia 4 de outubro, havia uma chance mínima, para que a
viagem desse certo. A providência, um milagrezinho tinha que acontecer.
Combinei com meu povo que iria sozinho, afinal, milagres não acontecem assim,
na vida da gente, quando a gente bem entende. Não botei fé.
O avião que
me trouxe marcaria certinho o final da greve. Desde ele, tudo voltaria ao
normal. Desembarquei em Belém, já de tardinha, com a certeza da ajuda do Santo
Francisco.
Sempre fui
fã de São Francisco (meu filho tem Assis no nome). Isso, se não causou
conflito, gerou um desconfortozinho na minha vivência dentro da igreja. Sou ex
aluno salesiano. Atuei na pastoral da Sacramenta, nas comunidades de base, nos
movimentos de jovens, levando a mensagem de Dom Bosco, mas não escondia a minha
inclinação franciscana.
Um ser
humano admirável, Francisco. Em plena idade média, num cenário irrefreável da
ascensão burguesa, rebelou-se e optou pela pobreza. Talvez essa reviravolta na
vida seja, realmente, o maior atrativo na historia de Francisco. E esta visão,
um tanto romanceada do santo, de prima, me arrebatou. Mas depois, conhecendo
mais sobre a opção de Francisco (e ajudado pelos cenários históricos dramáticos
envolvendo os Fraticelli, descritos por Umberto Eco em O Nome da Rosa), tomei
pé do quanto o Santo de Assis foi sábio e corajoso para superar a suntuosidade
da Igreja, a soberba do clero, a ânsia dos pobres... séculos mais tarde, a
greve dos aeronautas, e operar milagres. Salve, Francisco!
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