domingo, 8 de outubro de 2017

crônica da semana - círio psicodélico

O Círio e o povo unido
Quando entramos na praça, um tilintar psicodélico ecoou dentro de mim, uma satisfação líquida percorreu minha dorsal, ativou minhas terminações nervosas e o meu mundo transladou pela órbita letárgica de um caleidoscópio de flores lilases. Viajou entorpecida minha alma entre cantigas e bênçãos. Havíamos chegado no céu.
Mas antes, lutamos a luta de um povo unido.
Os padres franceses estavam um isso para serem expulsos do Brasil. Enquadrados na Lei de Segurança Nacional, os religiosos aguardavam julgamento presos.
O Círio era no dia seguinte. Na sede do Ipar, uma reunião, à revelia da ordem de Dom Alberto Ramos que proibia a realização de qualquer manifestação na procissão, decidia a estratégia de mobilização e protesto em apoio aos padres e aos 13 posseiros do Araguaia. Uma alemã magra, alta, com a dicção voluntariosa, fazia uma fala de certezas e crenças na liberdade. A pastora Rosa Marga iniciava um apostolado vibrante, corajoso, e solidário. Foi a grande líder do MLPA, movimento que se ergueu para lutar ao lado dos presos do Araguaia.
Tínhamos uma irmã salesiana na luta, também. Irmã Lísia era, como todas as outras freiras, digamos assim, caseira. Não se abalava para as coisas do mundo. Professava sua fé coordenando o semi-internato do Centro Social Auxilium e de lá saía apenas para a reunião com os jovens, do outro lado da rua, na Escola Salesiana do Trabalho. Foi contaminada com o bichinho do inconformismo, com a larvinha revolucionária. E acabou saindo pro mundo. Para toda reunião ou mobilização do MLPA, a gente arrastava a Queridinha, querido diminutivo pelo qual a irmã era conhecida, por causa daquele humor cearense da peste.
Vivíamos dias de transformações no início dos anos 80. A igreja retornava com as Comunidades de Base, apostava na práxis popular centrada no método “Ver, julgar e agir”. Os religiosos eram chamados a colaborar. Nossa turma operava com, o então padre, Brunys e com a Queridinha, pelas ruas estivadas da Pedreira e Sacramenta, no diapasão de Puebla.
No dia do Círio, o pau cantou feio. Dom Alberto falou. Dom Alberto avisou. Não passarão.
Até que caminhamos um bocado, mas, às proximidades da Basílica, o tempo fechou. Polícia despintada que estava no meio de nós, polícia fardada, todo mundo tirou uma casquinha. A primeira faixa a ser destruída, para mim, era a mais verdadeira. Trazia uma passagem da conversão de Paulo: “Por que me persegues?” Era simbólica. Quando ela caiu, quando se esfarelou aos pisões da repressão, nós todos nos esfarelamos. Padres, freiras, religiosos, leigos, jovens, velhos, todo mundo apanhou. Muitos foram presos com violência. Sangravam. Mas não choravam. Em meio ao ataque, ainda se entoou um canto novo de alegria, até o sufocamento total da manifestação. Eu fui varando, com pedaços de pano e uma ferpa deste tamanho sacada da estaca que emoldurava minha faixa, na mão. Pequenininho, me vi diluído naquela multidão, triturado por uma onda poderosíssima. Era a Berlinda chegando.

Quando entramos no CAN, um psicodelismo lilás acendeu dentro de mim. Havia chegado no céu.

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