O
Círio e o povo unido
Quando
entramos na praça, um tilintar psicodélico ecoou dentro de mim, uma satisfação líquida
percorreu minha dorsal, ativou minhas terminações nervosas e o meu mundo
transladou pela órbita letárgica de um caleidoscópio de flores lilases. Viajou
entorpecida minha alma entre cantigas e bênçãos. Havíamos chegado no céu.
Mas
antes, lutamos a luta de um povo unido.
Os
padres franceses estavam um isso para serem expulsos do Brasil. Enquadrados na
Lei de Segurança Nacional, os religiosos aguardavam julgamento presos.
O
Círio era no dia seguinte. Na sede do Ipar, uma reunião, à revelia da ordem de
Dom Alberto Ramos que proibia a realização de qualquer manifestação na
procissão, decidia a estratégia de mobilização e protesto em apoio aos padres e
aos 13 posseiros do Araguaia. Uma alemã magra, alta, com a dicção voluntariosa,
fazia uma fala de certezas e crenças na liberdade. A pastora Rosa Marga
iniciava um apostolado vibrante, corajoso, e solidário. Foi a grande líder do MLPA,
movimento que se ergueu para lutar ao lado dos presos do Araguaia.
Tínhamos
uma irmã salesiana na luta, também. Irmã Lísia era, como todas as outras
freiras, digamos assim, caseira. Não se abalava para as coisas do mundo.
Professava sua fé coordenando o semi-internato do Centro Social Auxilium e de
lá saía apenas para a reunião com os jovens, do outro lado da rua, na Escola
Salesiana do Trabalho. Foi contaminada com o bichinho do inconformismo, com a
larvinha revolucionária. E acabou saindo pro mundo. Para toda reunião ou
mobilização do MLPA, a gente arrastava a Queridinha, querido diminutivo pelo
qual a irmã era conhecida, por causa daquele humor cearense da peste.
Vivíamos
dias de transformações no início dos anos 80. A igreja retornava com as
Comunidades de Base, apostava na práxis popular centrada no método “Ver, julgar
e agir”. Os religiosos eram chamados a colaborar. Nossa turma operava com, o
então padre, Brunys e com a Queridinha, pelas ruas estivadas da Pedreira e
Sacramenta, no diapasão de Puebla.
No
dia do Círio, o pau cantou feio. Dom Alberto falou. Dom Alberto avisou. Não
passarão.
Até
que caminhamos um bocado, mas, às proximidades da Basílica, o tempo fechou.
Polícia despintada que estava no meio de nós, polícia fardada, todo mundo tirou
uma casquinha. A primeira faixa a ser destruída, para mim, era a mais
verdadeira. Trazia uma passagem da conversão de Paulo: “Por que me persegues?”
Era simbólica. Quando ela caiu, quando se esfarelou aos pisões da repressão,
nós todos nos esfarelamos. Padres, freiras, religiosos, leigos, jovens, velhos,
todo mundo apanhou. Muitos foram presos com violência. Sangravam. Mas não
choravam. Em meio ao ataque, ainda se entoou um canto novo de alegria, até o
sufocamento total da manifestação. Eu fui varando, com pedaços de pano e uma
ferpa deste tamanho sacada da estaca que emoldurava minha faixa, na mão.
Pequenininho, me vi diluído naquela multidão, triturado por uma onda
poderosíssima. Era a Berlinda chegando.
Quando
entramos no CAN, um psicodelismo lilás acendeu dentro de mim. Havia chegado no
céu.
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