sábado, 31 de outubro de 2015

crônica da semana - vacaria

A vacaria da Everdosa
... Foi então que, seguindo um fiozinho de água, Everdosa acima, dei de encontro com a pequena. “Oi”, ela disse, exibindo um sorriso franco entre as covinhas do rosto. “Meu nome é Gabriela, mas pode me chamar de Bri”...
Sabia que até um dia desses tinha uma vacaria aqui na Pedreira? E era a coisa mais normal do mundo a gente passar por ali, e ver as bichinhas ruminando o capim, balançando o rabo pra espantar os piuns, mugindo a esmo; as que tinham sinetas, andando e badalando.
Ficava na esquina da Timbó com a Antonio Everdosa (aqui me dá um estalo de dúvida e desconfiança sobre o correto nome do homenageado nessa rua. Pesquisei pacas e o nome mais parecido que encontrei é grafado de forma diferente, trazendo o ‘r’ para frente. Na pesquisa dei com o  militar português Antônio Correia de Castro Sepúlveda que lutou contra Napoleão durante a invasão da Península Ibérica e foi agraciado com o título de Visconde de Ervedosa, pelo rei D. João VI, quando as coisas se acalmaram. Dá-se então que, pelo que torna e pelo que deixa, o nome da rua teria uma ligeira mudança na pronúncia por causa do translado do ‘r’. Mas vá saber, não encontrei outra fonte que justificasse o nome pelo qual conhecemos a rua que abrigava a vacaria até um dia desses. Quem souber que conte outra ou o certo).
Não morava por ali, não. Era a casa da minha avó que ficava ao pegado da vacaria. Agora, era só eu ter uma folguinha que me abalava pra lá. Dizia pra mamãe que ia ver TV. Vovó tinha uma televisão Empire 9 válvulas novisca comprada no carnê da R. Mendonça em suavíssimas prestações. Mas o de vera mesmo, o que me levava para aquelas bandas era uma pequena aparentada do povo da vacaria. Sempre que parava na vovó, voltava o olhar para a garota. Meu radar a encontrava cuidando de alguma prenda: entrando com um balde cheio de leite na casa, saindo com uma cesta de vidros branquinhos e quentes prontos para a venda, entrando no curral e se demorando um pouco. Ficava um tempo no alpendre da vovó meio apombocado, mundiado pela pequena. Eu não sabia explicar aquele encegueiramento. Hoje, diria ser uma paixão infantil. Mas naquele tempo da vacaria, era um transe sem nome.
A Everdosa (ou Ervedosa?), sempre teve esta configuração atual.Vem larga, plana e baixa, desde a praça Eduardo Angelim lá na antiga Sacramenta, mas quando transpõe a Timbó, estreita-se e eleva-se em leito margeado por barrancos de pedras vermelhas. No tempo da vacaria, aquela área tinha um aspecto rural, molhado e frio. Minha avó deixava eu explorar aqueles morrinhos de pedra. Minha diversão era achar os olhos d’água. Aqui, ali, dava com uns furinhos no chão borbulhando e largando ladeira abaixo um fiozinho de água. Essa água estiradinha ia encontrando com outra, com outra, com outra de outros furinhos e formava um rego que entrava pelo quintal da vovó, contornava o pé de urucu, descia suave regando as touceiras de capim santo, tomava a direção do cajueiro, mas era barrado pela raiz do uxizeiro. Aí formava um laguinho que transbordava para o quintal da vizinha. Cada dia eu encontrava um furinho borbulhando, uma água estiradinha, mais longe. Cheguei até o Acampamento, emendando as aguinhas que molhavam o quintal da vovó.
... Foi seguindo um fiozinho de água, que demos de encontra. E ela sorrindo entre covinhas, falou o nome dela e me provocou: “Heim, Esse-menino, que tu queres por aqui, já? Heim, Esse-menino, como é teu nome?”. E eu, calado, apombocado.


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