A
Santa vai passar
A
Santa já desembarcando da Fluvial, um vuco-vuco danado na subida da Presidente
Vargas, disputa acirrada por uma sombra, uma ansiedade sem freio. O clima é de adrenalina
e de atenta espera. Eis que me chega um cidadão entre incauto e apático,
demonstrando ter desembarcado de Marte há poucos instantes; segurando uma
sacolinha plástica, com aviamentos da rotina, ar de missão cumprida, focado no
único intento de voltar para casa, e me pergunta se não está passando ônibus
ali na avenida. Respondi que estava tudo interditado, que era Círio, que aquela
multidão estava esperando para ver a Santa passar. Na mesma pisada, e meio
inconformado, ele deu meia volta e sumiu, sem devoção, entre os devotos.
Posturas
assim, alheias, distantes, são raras em outubro, mas acontecem, apesar dos
sinais que Belém fornece. Nas semanas que antecedem o Círio de Nazaré, a cidade
ferve de calor e de sentimentos. Temos que nos adaptar à época, nos reinventar
nas tramas e tranças. Digo até que a principal virtude exercitada pelo
belemense, em tempos de Círio, é a paciência. Principalmente no trânsito. A
capacidade de relevar, de tirar por menos situações corriqueiramente
conflitantes que ocorrem pelas ruas de Belém, é um dos milagres que a Santa
opera. É um tempo que a gente se conforma. Tudo pela Santa. Uma viagenzinha
daqui pra’li pode passar de hora e meia. A volta para casa, aquele compromisso
irremediável, se coincidir com uma das tantas procissões em homenagem à Santa,
pode levar um tempo enorme para se realizar. Como dizemos amiúde: a cidade
para. Até a Pedro Miranda, aqui na Pedreira, a única avenida de periferia com
três pistas, engarrafou no sábado. Por aí a gente tira o nível de tolerância
que o período exige. Ocorre, também que, em momentos capitais, Belém encurta.
Só vai até a Doca (por isso o mundiamento do cidadão no sábado de manhã, lá na
Presidente Vargas).
Por
causa, também, das travas na locomoção, é natural que os promesseiros façam as
desobrigas a pé. E não dêem muita bola para o traçado da hora, que as rotas
tomem. A fé e os pés sempre levam ao encontro com a Santa.
Caminham
desde muito longe. Na sexta-feira a BR-316 estava repleta. Vi romeiros também
nos ermos da alça viária. Alguns, caminhando há dias. A estes, pouco importava
a trajeto dos ônibus, o conforto dos carros, a carona amiga, as alterações ou
rotinas do trânsito. A estes um rumo só havia. Irredutível, irrevogável.
Nos
limites da cidade, ocorre da mesma forma. Mesmo de bairros distantes, as
pessoas dispensam a condução e partem caminhando para o encontro com a Santa. É
parte da promessa, parte do sacrifício, o caminhar concentrado e reverente.
Antes do nascer do sol um serpenteio fervilhante de caminheiros remodela a
cidade.
Trânsito
interrompido. Rumo à Doca, o cidadão carregando a sacolinha com os víveres
costumeiros da hora. A volta para casa sozinho, ausente, insensível ao sábado
iluminado.
Meu
coração bate forte, o foguetório avisa, a multidão em movimentos decididos
procurando o melhor lugar. Emoção e devoção. A Santa vai passar.
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