Encontro marcado
O
foguetório anuncia a Romaria Fluvial se adiantando lá na baía. Trânsito
engarrafado. O ônibus chega na biqueira da Doca e, sem quê nem pra quê, dá uma
guinada rumo não sei donde. Estávamos tão perto! Os fogos espocam alhures. O som
agora está mais distante. Varamos na José Malcher. Vou perder a descida da
Santa, profetizo esboçando um desespero indisfarçável. Sinal vermelho. Me bato
com umas contas rápidas. Recomponho em retalhos assimétricos as fórmulas da
Física. Velocidade, o estirão a ser percorrido, tempo. Atrito. Onze e pouquinho.
Faço uma simulação da maré. Se estiver na vazante ainda dá tempo. A corveta vai
encontrar resistência da corrente lá na desembocadura do Guamá. Éraste, em
compensação quando embicar para a escadinha, vem que vem somando vetores,
reconsidero. Pensando assim, botando fé na Física, não vai dar tempo. Sinal
fechado. Trânsito não anda. Decido. Umbora, gente, chamo a mulher, os meninos.
Peço pro motora abrir a porta e saio em desabalada carreira pelas calçadas de
lióz da antiga estrada de São Jerônimo. Nem dei que estava com uma sandália de
passeio e que ela, de vez em quando fugia do meu pé, indo dar lá longe e me
atrasando mais ainda...
Durante
muitos anos, passei o Círio longe. Em Porto Velho, Altamira, Manaus, Macapá.
Embora na Amazônia a devoção seja tanta e em todos esses lugares a fé também se
manifeste de forma tão ardente quanto em Belém, eu me ressentia desse
distanciamento, inquietava-me a ausência, reivindicava o termo, o jeito
paraense, o aconchego do lar. Requeria o clima generoso e dócil que grassa em
Belém.
Eis
que a Santinha olhou por mim e, há pelo menos 5 anos, a lida, os afazeres se
organizaram na minha vida de tal forma que me permitem estar em casa por
ocasião do Círio.
E
o meu grande momento, aquele instante em que percebo melhor a devoção é
exatamente a chegada da Romaria Fluvial lá na escadinha. Ali somos louvores indizíveis,
emoções libertas, sintaxes fervorosas de outubro. A graça se faz em fartos
cachos de manga, em sombras acolhedoras e brisas confortantes, em lágrimas
doces e vozes agradecendo, em olhares de contemplação e preces. Na subida da
escadinha, até o estrondoso rumor das motos é tido como se fosse delicada
bênção. Há 5 anos, tenho um encontro marcado com a Santa, ali, na subida da
escadinha.
Só
que eu ainda estava na subida da José Malcher catando a sandália aqui e acolá,
na carreira. Procurava entender a situação. O cortejo adiantou ou nós é que
demoramos pra sair de casa? Estava tudo tão combinadinho. Ofegante, não
desistia do encontro. Minha mulher e meus meninos, perdidos da vista, lá atrás.
Tive um forte pressentimento. Chegou!
Logo
adiante do palacete Bolonha, meu joelho começou a doer. Uma herança do glorioso
Internacional da Mauriti. A rua se encontrava aos sábados, no quintal do Seu
Preá. Era um campinho aterrado com serragem. Piso macio que permitia até um
balançar ondulado nas partes mais densas e úmidas. As partidas eram
disputadíssimas. Dez minutos ou um gol. Cara ou coroa em caso de empate. Pra lá
migravam todos os matizes de atletas da Mauriti. Os grandes, a molecada da
base, os senhores casados, os mais aquinhoados, os mais pobres. Sábado à tarde
celebrávamos a diversidade no campinho de serragem. Na época, tinha um teste
marcado no Paysandu. Um vizinho, que se passava pra minha bola, havia me
indicado. Mas quando! Foi muito rápido. A disputa foi leal. Dei um encontrão e
caí pra frente, sobre o joelho. Não senti nada. Um choque, eu acho. Uma
resposta diferente do corpo. Quando levantei, não consegui mais esticar a
perna. A turma fez pouco caso, afinal, era comum ali, a gente esmigalhar a
cabeça do dedo, partir supercílio, ganhar uma desmentidura. Naquele sábado, no
campinho de serragem do seu Preá, acabou minha carreira de jogador de futebol...E
muitos anos depois, correndo ao encontro da Santa, o joelho ainda se magoa e me
avisa que temos pendências a resolver.
Apesar
da sandália e da dorzinha chata no joelho, cruzei a Praça da República como um
bólido (diriam os narradores de futebol, aos microfones das difusoras de rádio,
fosse o caso, a minha solitária peleja).
Mas
foi eu bater o pé na Presidente Vargas, e a Santa passou.
Estar
aqui contando essa história no jornal, para mim, já é uma graça. Havia uma
vontade em mim de dizer, alguma vez, com muita alegria e gozo, que o nosso
encontro naquele dia, apesar dos reveses, aconteceu. A providência desacelerou
o cortejo. A Santinha parou na minha frente, parece para me ralhar: “mas tu,
heim, pequeno, quase, quase”. Eu apaguei do mundo. Durante a eternidade
daqueles segundos, o universo fez-se em nós dois apenas. Reverente, aceitei o
puxão de orelha e fiz o mesmo dos últimos encontros. Ergui as mãos em direção a
Santa e agradeci. Poderia pedir. De mil coisas, preciso. Mas não, o que me
ocorre toda vez que nos encontramos, é apenas agradecer. Pelos meus meninos,
pela minha companheira, pela minha família, pela sintaxe de outubro, pela
maniçoba mais co’pouco, pela mãe que tive, pelos amigos que me toleram, pela
brisa da baía que sopra lá embaixo no Geral, pelo meu joelho reclamão, mas
inteiro. Pela minha saúde e por ser um sujeito produtivo. Agradeço pelos cachos
de manga e pela graça de ter sempre o de cumê dentro de casa. Agradeço à doce
Virgem Maria pela esperança que ela deposita em minhas mãos a cada Círio.
A
Santa passou. Os meus meninos, minha mulher apareceram e me pegaram a chorar um
choro de felicidade. Tomamos as mãos uns dos outros e descemos para a escadinha
fazendo combinas e amarrando compromissos de, para o ano, não nos atrasarmos de
jeito e maneira, para este abençoado encontro.
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