quinta-feira, 4 de junho de 2015

crônica círio

Encontro marcado
O foguetório anuncia a Romaria Fluvial se adiantando lá na baía. Trânsito engarrafado. O ônibus chega na biqueira da Doca e, sem quê nem pra quê, dá uma guinada rumo não sei donde. Estávamos tão perto! Os fogos espocam alhures. O som agora está mais distante. Varamos na José Malcher. Vou perder a descida da Santa, profetizo esboçando um desespero indisfarçável. Sinal vermelho. Me bato com umas contas rápidas. Recomponho em retalhos assimétricos as fórmulas da Física. Velocidade, o estirão a ser percorrido, tempo. Atrito. Onze e pouquinho. Faço uma simulação da maré. Se estiver na vazante ainda dá tempo. A corveta vai encontrar resistência da corrente lá na desembocadura do Guamá. Éraste, em compensação quando embicar para a escadinha, vem que vem somando vetores, reconsidero. Pensando assim, botando fé na Física, não vai dar tempo. Sinal fechado. Trânsito não anda. Decido. Umbora, gente, chamo a mulher, os meninos. Peço pro motora abrir a porta e saio em desabalada carreira pelas calçadas de lióz da antiga estrada de São Jerônimo. Nem dei que estava com uma sandália de passeio e que ela, de vez em quando fugia do meu pé, indo dar lá longe e me atrasando mais ainda...
Durante muitos anos, passei o Círio longe. Em Porto Velho, Altamira, Manaus, Macapá. Embora na Amazônia a devoção seja tanta e em todos esses lugares a fé também se manifeste de forma tão ardente quanto em Belém, eu me ressentia desse distanciamento, inquietava-me a ausência, reivindicava o termo, o jeito paraense, o aconchego do lar. Requeria o clima generoso e dócil que grassa em Belém.
Eis que a Santinha olhou por mim e, há pelo menos 5 anos, a lida, os afazeres se organizaram na minha vida de tal forma que me permitem estar em casa por ocasião do Círio.
E o meu grande momento, aquele instante em que percebo melhor a devoção é exatamente a chegada da Romaria Fluvial lá na escadinha. Ali somos louvores indizíveis, emoções libertas, sintaxes fervorosas de outubro. A graça se faz em fartos cachos de manga, em sombras acolhedoras e brisas confortantes, em lágrimas doces e vozes agradecendo, em olhares de contemplação e preces. Na subida da escadinha, até o estrondoso rumor das motos é tido como se fosse delicada bênção. Há 5 anos, tenho um encontro marcado com a Santa, ali, na subida da escadinha.
Só que eu ainda estava na subida da José Malcher catando a sandália aqui e acolá, na carreira. Procurava entender a situação. O cortejo adiantou ou nós é que demoramos pra sair de casa? Estava tudo tão combinadinho. Ofegante, não desistia do encontro. Minha mulher e meus meninos, perdidos da vista, lá atrás. Tive um forte pressentimento. Chegou!
Logo adiante do palacete Bolonha, meu joelho começou a doer. Uma herança do glorioso Internacional da Mauriti. A rua se encontrava aos sábados, no quintal do Seu Preá. Era um campinho aterrado com serragem. Piso macio que permitia até um balançar ondulado nas partes mais densas e úmidas. As partidas eram disputadíssimas. Dez minutos ou um gol. Cara ou coroa em caso de empate. Pra lá migravam todos os matizes de atletas da Mauriti. Os grandes, a molecada da base, os senhores casados, os mais aquinhoados, os mais pobres. Sábado à tarde celebrávamos a diversidade no campinho de serragem. Na época, tinha um teste marcado no Paysandu. Um vizinho, que se passava pra minha bola, havia me indicado. Mas quando! Foi muito rápido. A disputa foi leal. Dei um encontrão e caí pra frente, sobre o joelho. Não senti nada. Um choque, eu acho. Uma resposta diferente do corpo. Quando levantei, não consegui mais esticar a perna. A turma fez pouco caso, afinal, era comum ali, a gente esmigalhar a cabeça do dedo, partir supercílio, ganhar uma desmentidura. Naquele sábado, no campinho de serragem do seu Preá, acabou minha carreira de jogador de futebol...E muitos anos depois, correndo ao encontro da Santa, o joelho ainda se magoa e me avisa que temos pendências a resolver.
Apesar da sandália e da dorzinha chata no joelho, cruzei a Praça da República como um bólido (diriam os narradores de futebol, aos microfones das difusoras de rádio, fosse o caso, a minha solitária peleja).
Mas foi eu bater o pé na Presidente Vargas, e a Santa passou.
Estar aqui contando essa história no jornal, para mim, já é uma graça. Havia uma vontade em mim de dizer, alguma vez, com muita alegria e gozo, que o nosso encontro naquele dia, apesar dos reveses, aconteceu. A providência desacelerou o cortejo. A Santinha parou na minha frente, parece para me ralhar: “mas tu, heim, pequeno, quase, quase”. Eu apaguei do mundo. Durante a eternidade daqueles segundos, o universo fez-se em nós dois apenas. Reverente, aceitei o puxão de orelha e fiz o mesmo dos últimos encontros. Ergui as mãos em direção a Santa e agradeci. Poderia pedir. De mil coisas, preciso. Mas não, o que me ocorre toda vez que nos encontramos, é apenas agradecer. Pelos meus meninos, pela minha companheira, pela minha família, pela sintaxe de outubro, pela maniçoba mais co’pouco, pela mãe que tive, pelos amigos que me toleram, pela brisa da baía que sopra lá embaixo no Geral, pelo meu joelho reclamão, mas inteiro. Pela minha saúde e por ser um sujeito produtivo. Agradeço pelos cachos de manga e pela graça de ter sempre o de cumê dentro de casa. Agradeço à doce Virgem Maria pela esperança que ela deposita em minhas mãos a cada Círio.
A Santa passou. Os meus meninos, minha mulher apareceram e me pegaram a chorar um choro de felicidade. Tomamos as mãos uns dos outros e descemos para a escadinha fazendo combinas e amarrando compromissos de, para o ano, não nos atrasarmos de jeito e maneira, para este abençoado encontro.



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