Carrapatinho
Ao
contrário de Argelzinho que, desde que aprendeu a falar, não sei por quais eiras
ou beiras, sempre me chamou de Raimundo, ela sempre me chamou de pai.
Esta
diferença nas relações, nos vocativos e nas vocações, aponta e traduz ritmo próprio,
diz um pouco da marcação, do mapeamento formal e sentimental que nos desenha e
nos define como pai e filha.
Ela é a
minha neguinha branquinha primeira e única. Nasceu já avisando que seria
autêntica, sem comparação. Chegou estabelecendo responsabilidade e respondendo à
paz ou ao descontentamento com silêncios e olhares críticos. Imensos e
críticos. Desde bebê, nada passa por Amaranta sem um crivo criterioso.
Durante
esses dezessete anos de convivência, completados ontem, aprendi a interpretar
as vagas de Amaranta Maria. Procuro me adestrar aos reclamos interiores, aos
prazeres recônditos de minha filha e alinho dúvidas e inquietações na direção da
luz que seus olhos disparam. Feixes luminosos ora comprazidos, ora intolerantes.
Sempre sinceros e sempre elucidativos.
Apesar
da predileção em dar a letra das emoções com uma linguagem visual radical, em
alguns momentos Amaranta se deixa trair e queda-se ao tato, procura aconchego e
vira carrapatinho. E nessa hora há mais mistério que descobertas. Um afago pode
ser carência, saudade, ciúme, paixão, desilusão, insegurança, medo, posse... Os
olhos criptografam mensagens que não entendo. Mas sou pai e dou meu colo.
Certa
vez, participei de uma coletânea de poesia e fizemos o lançamento aqui na
Aldeia Cabana. Vários autores, familiares. O momento era de integração, de
contatos. Os leitores queriam autógrafo, um dedo de prosa, uma foto para
registro. Amaranta tinha seus três anos, por aí. Durante o evento, se atracou
do meu colo de tal forma que não me deixou falar com ninguém. Tive dificuldades
para autografar junto com os outros autores, desisti de declamar no pequeno
palco armado, intentei algumas vezes fazer com que ela fosse para o chão,
brincar com outras crianças. Em vão. Colou em mim feito carrapatinho,
aninhou-se no meu colo e ali ficou defendendo território.
Uma
explicação para esta reação de Amaranta talvez resultasse da novidade de um
ambiente festivo, com muita gente, recortado por músicas e declamações. Talvez
estivesse estranhando. Mas por que não se acudiu à mãe? Nesse tempo, já falava
bem, não se aperreava com demandas urgentes. Mas, naquele lançamento, me
certifiquei que Amaranta elabora códigos vários para se relacionar e acaba
conjugando, completando um com o outro. Nesse dia, quis o colo, o calor. Deu
sinais difusos com o olhar e embora não seja de sua preferência revelar-se em
palavras, abriu-se à sonoridade de filha, e o mínimo (elucidativo) que ouvi
dela naquele dia foi “Papai”. Entre uma e outra zanga. Entre um ou outro risco
de desapregar de mim, ouvia, baixinho, doce. “Papai”. Naquele dia, para minha
compreensão, ratificou o mapeamento sentimental que nos define como pai e filha:
uma marcação na maioria das vezes longe, pautada à distância dos olhares;
outras e adoráveis vezes, pertinho carrapatinho.
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