Los hermanos
O álbum duplo “A arte de Mercedes Sosa”, o tenho comigo desde 1985. Ele data da minha passagem por Rondônia e tocou na minha vitrola umas quantas vezes, no correr desses 26 anos. É um disco emblemático que traz os grandes sucessos da cantora argentina. Traz para o coração uma coletânea de cantos emocionados que exprimem o sonho de uma unidade latina e expressam a ânsia por liberdade e paz. Professa o desejo de sermos todos hermanos. É um manjar sonoro que alimentou, durante muitos anos, o fogo revolucionário dentro de muita gente (um fogo que ardeu dentro de mim também).
O vinil já rodou, inclusive, em reuniões da confraria que criamos, eu e um grupo de amigos aqui em Barcarena. E eis que no nosso último encontro, não deu outra: o disco rodou de novo. Um dos convidados selecionou os dois LP’s e os colocou no prato.
Há algum tempo, fazemos um encontro, para tomar um vinho ‘palatável’, ali na faixa mínima dos 5 Reais, tocar uma viola, recitar uns poemas, falar bobagem, cortar um queijinho e ouvir um vinil. Claro, gente, que não é necessariamente nesta ordem. Os participantes são cabanos. Vizinhos, professores, acadêmicos, operários... Até políticos iniciantes e gente do alto clero da administração pública já marcaram presença (aqui não rola o preconceito). Todos além dos trinta, com exceção do David, um jovem economista que tem cadeira cativa, muito porque é um garoto inteligente e boa praça, mas também porque é o único que tem a vista boa para ler os rótulos, identificar e comentar as safras que pintam na casa.
Colocamos um nome pomposo na reunião: Confraria do Vinho. A desculpa para o encontro é, realmente, adestrar o paladar, adaptar os gostos e conhecer os variados tipos desta bebida mítica. Na mesa já rolaram safras ilustradas e até água, porque acreditamos que esta, foi-não-foi, pode ensejar uma transubstanciação.
A idéia surgiu a partir da necessidade de programações culturais alternativas para quem vara a sexta aqui na Vila dos Cabanos. E também para fugir das mesmices barulhentas que assombram a cidade. Houveram uns pilotos legais com a participação do poeta Rui do Carmo e com as prescrições melódicas do doutor Antônio Carlos, ao violão. Aí a gente se animou.
O ambiente é free. Quem chegar tá chegado. Basta trazer o bom humor, um poema escrito num papelzinho, uma garrafa de vinho debaixo do braço e a amizade. A convivência e a interação contam, na reunião, mas quem faz sucesso mesmo como gerador de bons ares, é o som que rola (baixinho para não incomodar a vizinhança e para permitir o papo) lá no meu três-em-um. Tenho uma ruma de vinis e a galera, principalmente os mais jovens, se encanta. Fuçam, fuçam, tiram da capa, passam a flanelinha, comentam, descobrem coisas (destaque para o disco da Xuxa, um long play do Led Zeppelin e uma cult do Charlie Parker, que eu, por falta de tempo ou por insensibilidade mesmo, nem sabia que existiam no meu acervo).
A idéia é que nosso encontro traduza fielmente os contentamentos que transitam num simpósio (que é uma palavra de origem grega e que significa ‘beber junto’). Importa, na confraria, que a gente se sinta bem e feliz.
No nosso último encontro um dos jovens convidados selecionou o álbum da Mercedes Sosa. Logo naquele dia em que eu vivia um sobressalto temporão pelos nossos sonhos perdidos, nossos desencantos políticos; sobre a queda de nossas muralhas ideológicas, sobre os nossos deslizes morais. Ah, esses moços, que me volvem, ‘curtido de solidão’, para um mundo de tantos hermanos e para “una hermana muy hermosa que se llama libertad”.
Maravilha, Sodré! O Roger Normando tem carradas de razão ao divulgar aos ventos o teu blog.
ResponderExcluirUm brinde, mesmo que abstêmio, à Confraria. Vida longa aos que, com sabedoria e leveza, sabem resistir e prosseguir, mesmo com tantos sonhos desfeitos (e depois, refeitos, é claro!)
Gracias a la vida!
ResponderExcluirZé maria(pirão de feijão)