segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Morte em La Paz - cap IV e V


Capítulo IV
Tem de ser assim? Tem de ser? Não tem mais 17 anos. Poderosas facções plutônicas cisalharam seus sonhos. A realidade dele é outra. Nem sabe ao certo se é o espírito do médico da Terra ou do aventureiro José Arcádio que o está levando ao desafio de atravessar os Andes. Não sabe dizer. Já viveu outras emoções fortíssimas em outros lugares exóticos. No centro da floresta, no alto de grandes serras. Já realizou trabalhos de pesquisa sob olhares desconfiados dos Yanomami. Já desceu em minas de até mil metros de profundidade. É movido a adrenalina. A profissão afugentou-lhe o medo e destruiu encantos antigos. E que médico que nada. A profissão naufragou-lhe as ilusões em águas de um mar que se esconde atrás dos Andes e que ele procura reencontrar. É o amante secreto de Elis. Que médico que nada. A terra sofre em suas mãos. Casou-se com Marta, há dois anos.
Logo que se formou, entrou para uma multinacional especializada em pesquisar frentes de lavras e viabilizar projetos de mineração. Cresceu na empresa pelo apuro e a sagacidade com que desenvolvia planos de cubagem perfeitamente (propositadamente?) ajustadas às ambições econômicas da corporação. Notabilizou-se por utilizar recursos próprios da Engenharia na elaboração de projetos para barragens, canais e diques. É um profissional esmerado, multifacetado. Tecnicamente irrepreensível. Respeitadíssimo.
O médico, o monstro. Ele agride a Terra. Ataca os seres de Gaia. Com este contrato, na Bolívia, ele pretende abrir uma fenda feérica do Chile ao Peru, que, depois de pouco mais de dez anos de exploração, poderá ser vista da lua, segundo previsão entusiasmada dele. É um grande geólogo. Domina como poucos a geologia andina. Para os amigos, reconhece que um movimento de terra desta envergadura, numa estrutura útil à grande cordilheira, pode sim, comprometer o substrato rochoso e também deteriorar o ambiente lacustre do altiplano. Mas justifica-se: “ É um puta projeto que vai nos dar o domínio total do mercado mundial de cobre”. É uma pena que os Andes venham  abaixo. É uma pena. Tem de ser assim?

Capítulo V

Tem de ser? Elis, meu amor. Pra que desvirginar os Andes? Vir abaixo antes deles? Para que a prosa de encontrar com a floresta à montante do Guaporé? Fazer trilhas ásperas montado em mulas, usar o sombrio poncho boliviano felpudo e coceirento. Tomar chá de cócoras sob a bruma melancólica da encosta boliviana, rodeado de índios curiosos ao entardecer. Para que tantos perdões? Basta um purgatório de ar rarefeito a este monstro, usurpador do sonho do primeiro Buendia. Traidor da fantástica Macondo soterrada sob seus escrúpulos. A ele mil anos de penitência de braços com a miséria e a lama florida, pelos arrabaldes de La Paz. Nunca o mar. A ele, o labirinto intransponível. O repouso agoniado sob as cachoeiras do Madeira. Ao monstro, o fogo impiedoso do centro da terra. Para sempre. Nunca o mar. Nunca o mar.


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