Capítulo II
Quando iniciou o curso de Geologia, na USP, aos 17 anos, orgulhava-se. Dizia que o curso tinha a nobre missão de formar médicos. Médicos da Terra. Para ele, a Geologia era a medicina aplicada ao planeta. Depois de formado, iria curar as feridas da Terra. Enfrentaria as doenças abissais com vacinas tectônicas. Seria um especialista em sarar erupções ígneas violentas. Iria enlevar-se ao estancar hemorragias destruidoras de lavas incandescentes. Faria a fotografia geomorfológica da crosta mais agitada e a radiografia sísmica dos ermos. Salvaria os rios e igarapés das mortes por assoreamento e erosão das margens. Seria o cirurgião da mata ciliar.
Era um jovem estudante de Geologia, há alguns anos. Não sabia nada do fogo interior do planeta e nem da ambição dos homens.
Na USP, conheceu Elisângela. Pegavam o ônibus juntos. Moravam em bairros próximos. Ela fazia medicina. A médica das gentes. Ele, o médico da Terra. Ah, Elis, o seu grande amor. Inesquecível. O primeiro. A primeira. A primeira vez. No quarto dele, numa tarde escandalosamente paulistana. Garoa fina, lá fora. Sax de Scott Page na vitrola. Rumor cotidiano da casa. Louça batendo na cozinha, televisão na sala, em voz alta. Menino em desabalada pelo corredor, esbarrando na porta, mas não atrapalhando, não. Som do Pink Floyd. A primeira vez. O médico da Terra.
Elis, meu amor. Anda, anda! Calcinha apertada. Beijo apertado. Lábios tensos, pressionados, machucando. Mais, mais, vai! Elis, ah, Elis. Inesquecível. Beijo apressado. Mãos deslizando apressadas. Dentes atritando uns com os outros num tilintar abafado, entre lábios. A primeira vez. Hum...hum! Sangue dele, sangue dela. Hum...hum! Lágrimas de dor. Ah, o bom que dói. Gozo nas coxas. Beijo relaxado. O menino esbarrando na porta. A mãe, a casa. Ah, Elis. Inesquecível. O frio de La Paz. O tocador apaixonado das esquinas. Vem me buscar, Elis.
Capítulo III
Marta foi a primeira a chegar em Cumbica. Caberia a ela, uma cantora da noite, afinadíssima, com quem estava casado há dois anos, a dolorosa missão de receber o corpo, assinar toda aquela papelada, aqueles inquéritos, aqueles registros, aquelas declarações.
Elisângela chegou atrasada. O corpo já havia sido liberado para o enterro, quando ela chegou. Passou mal, no balcão do aeroporto e foi socorrida por amigos. Elis, a médica das gentes. Viúva, viúva. Sozinha de novo. Somente a lembrança do último encontro, antes da viagem dele para La Paz. A possibilidade cristalina de assumirem publicamente o amor que sentiam, toda a vida, um pelo outro. Viúva, Elisângela não foi ao cemitério. Desmaiou no aeroporto e foi socorrida por amigos.
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