Clinoreflexão
Não
sei vocês, mas eu sou assim. Tô de boa assimilando o bem e o mal da vida, sem
rir sem falar, com uma mão, com a outra, num serececê rotineiro, quando num
trisca, encasqueto com coisa mínima, sem importância, mas pela potência que tem
de me encasquetar os miolos, ganha relevo de montanha. Dou um passinho a
frente, outro atrás, remancheio, decido. A seguir desisto de levar adiante
minha encasquetação. Mais com pouco reanimo a intriga, revivo a questão. Faço
medidas de interesse. O que meus leitores têm a ver com isso? Deixo estar e vou
em frente entendendo que, ah, acontece sim, com mina de gente, do mesmo jeito.
Meu
comichão por agora é pelo significado ou a interpretação do que é ‘inclinação’.
Até arrumei um título todo estiloso que tem na composição o elemento ‘clino’,
radical que vem do grego e que associado ao meu pensamento quase compulsivo, me
faz traçar esta pergunta para vós. O que me dizem: um objeto que é muito
inclinado. Está muito em pé ou está muito deitado? Dúvida... Dúvida, meu pai
eterno, que tudo traça por linhas quaisquer, sejam elas retas, curvas,
paralelas, infinitas, valei-me!
Pra
não parecer que pirei das fuças, conto o porquê dessa apreensão. É que agora,
sexagenário que sou, tô naquela fase da ranzinzagem. Tudo me toca, coisinha
miúda me incomoda e logo vou atrás de argumentos para assegurar a minha paz. O
destaque é para as viagens de ônibus com poltronas reclináveis. Tenho
vivenciado situações em que, quando embarco, muitos lugares estão ocupados e
até os assentos destinados às prioridades já encontraram jovens saudáveis e
sonolentos para ocupá-los. O embaraço ainda é maior quando constato todos os
encostos das cadeiras arriados, dificultando o acesso ao miraculoso lugar
desocupado que encontro. Tenho para mim que a boa educação e o cuidado com o
outro inspira baixar o encosto apenas quando não houver ninguém para embarcar e
o ônibus já estivar de partida. Antes disso, é um sufoco para quem quer um
lugarzinho e tem que se atar naquele apertado.
O
que me deixou na cuíra é que todo mundo chama o ato de baixar o encosto, de
inclinar. Há uma turma que é só ajeitar o corpo, que já inclina a poltrona.
Olha, olha quem está de novo formando o verbo inclinar... o mesmo elemento
grego ‘clino’.
Então
se o mal educado deita a poltrona antes que o passageiro de trás ocupe o lugar,
ele está baixando o encosto, aproximando o encosto da horizontal, como se
arremedasse a cama da casa dele. O que nos faz imaginar que um objeto ou um
plano muito inclinado tende mesmo à horizontal. Mas, pera...Tudo é a
referência.
Dizque
não sei do caso e do certo. Mas sei sim, dos conceitos. Consultando meus
apontamentos, me parece claro que quando uma pessoa desce o encosto da cadeira
ela está, não inclinando, mas ‘desinclinando’. Tenho como certo que inclinar é
o contrário, é tender à vertical. Quanto mais em pé, mais inclinado.
Na
Geometria, a inclinação é uma direção de um objeto no espaço. É a orientação
que está entre a direção vertical e a horizontal. Trata-se de uma vastidão de
posições. Mas isso não é o caso dos meus chiliquitos. O que me toma de ansiedade
e curiosidade é o sentido da inclinação. O senso comum diz que inclinar é
descer o encosto da poltrona pra baixo. Na regra, é subir o encosto pra cima.
Posto
isso, da próxima, vou estabelecer o caos. Quando entrar no ônibus e topar com
um jovem, em sono profundo (ou fingindo-se adormecido) com o encosto da cadeira
todo deitado, estreitando as minhas possibilidades de acesso ao meu lugar, vou
acordá-lo e pedir, educadamente, pelo conceito, para que ele incline a cadeira
dele. Bora ver o bicho que vai dar.
Espero
que esta reflexão torne meus dias mais inclinados. Meus atos e intenções rijos
e de pé.
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