Do menor para o maior II
Eu
sou do tempo que a gente cantava o hino, na entrada da escola. Um rito que,
encenado dentro daquele contexto de regime militar, catava sinais de ordem e
progresso. Mas quando! A fila era a prova de fogo da sisudez militar. E dava de
dez na rigidez comportamental. Moleque virava, mexia, pintava os canecos, antes
e até durante a execução do hino. Desde a avacalhação desmedida na hora de formar,
quando nossa camisa ficava toda pensa de tantos puxões que recebia na rebeldia
dos braços ao cobrir à frente, cobrir ao lado, descansar; até a saída de forma,
era um terror variado. Destaque que, na vera e no dito da malinação, tinha uma
turminha que ia além, se superava. Arrisco pensar hoje, que aqueles meninos
péssimos expressavam uma personalidade afeita à arenga, ao exercício de alguma
superioridade sobre o outro, pelo uso de força, da intimidação e da humilhação.
Mesmo que o outro fosse da mais pura paz. Que relevasse, fizesse que não era
com ele. Não tinha escapatória. Os atentados não davam sossego, e se aviavam
nessa prática naquele ambiente, dizque, higienizado pela ilusão conservadora
atada ao cerimonial do hino.
Tirando
uma pela outra, eram atitudes impulsionadas por um ódio latente, um fogo
atentatório, digo até, algo próximo ao sadismo, e ligadíssimo à beligerância
bem pensada, do mesmo jeito que aconteceu no último final de semana em que o
Brasil jogou na Espanha.
Na
Europa, o clima arremedava acolhimento, penitência coletiva, negação providente
do racismo. Da discriminação e do clima tenso. Na pauta uma forma articulada,
de modos a envolver o maior número de pessoas dispostas a apoiar as lutas
contra a intolerância e especialmente contra as agressões sofridas pelo jogador
brasileiro Vinícius Júnior.
Aí
volto à fila dos anos 70, para cantar o hino. Naquela atmosfera cívica, todo
mundo concentrado na letra nada fácil do Joaquim Ozório, não é que tinha um
moleque que saía lá de trás, do último lugar e ia até o primeiro da fila,
bicudar a canela do coleguinha! Desafiava toda a organização, desmontava
qualquer discurso ordeiro, desfazia a menção que fosse de respeito fraterno e empastelava
o rito. Causava, criava um desconforto, era reorientado, pegava uma bronquinha
e saía na boa. Para alguns, deixava aquela cena de ataque gratuito, como herói.
Ganhava fama e adeptos como o destemido, aquele que desafiava a organização,
impunha o seu poder e subjugava os mais discretos ou aqueles que representavam
a minoria abandonada de voz e vez. Do alvo constavam os baixolinhas como eu, os
negros, os de roupas remendadas, as meninas, os educados e isentos...
O
clima na Europa era, podemos entender, de reparação, de uma acanhada reação ao
preconceito. Dias antes Vini Júnior havia sido atacado com atos e palavras
preconceituosas, em um jogo na Espanha. Logo em seguida em atuação pela seleção
brasileira, a delegação brasileira exibiu sinais de resistência ao racismo,
representados pela camisa preta, inédita, do uniforme, protestos no gramado e
sensibilizações fora das quatro linhas.
Porém,
não tem aquelas personalidades afeitas à arenga? Pois não foi que, em meio
àquela cordialidade, às pregações de aceitação e tolerância realizadas no
estádio, me sai um cidadão péssimo, integrante, inclusive, do grupo de trabalho
que atuava no estádio e pratica os mesmos atos de racismo contra o assessor do
Vinícius Júnior, com o requinte odioso, de abrigar uma banana no bolso do
uniforme!
Tem
gente, sofro ao admitir isso, que nasce para espalhar a cizânia, criar o
terror, puxar a gola da nossa camisa da escola, sair de trás da fila e bicudar
o outro lá na frente.
Ah,
a fila naquele tempo era do menor para o maior. Adivinhem vós quem era o
primeiro, o bicudado...
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