Escolhas
Antes,
as escolhas, para mim, eram as fagulhinhas descartadas pela catação que minha
mãe fazia e nos orientava fazer, na porção diária de arroz, feijão ou outro
grão que fosse para a panela mais com pouco. Escolhas eram as partes indesejadas,
a pelinha, uma pedra bem pequenininha, a casca desalojada do grão, um
quebradinho tisnado. Escolhas formavam o subgrupo do punhado que não servia pra
gente comer. Mamãe dizia pra catar bem catadinho e depois jogar as escolhas
fora. Por vezes, indicava mergulhar tudo numa baciinha com água e esperar. A
catação seria mais fácil porque as escolhas flutuariam.
Minhas
escolhas catáveis e absolutas foram ficando para trás. A semântica atuou e...
Nem
todos os subgrupos que computei na lógica das minhas catações bandearam-se aos
descartáveis.
Aconteceu
de maneira conciliatória. Entendo que, serenamente, o tempo transformou as
fagulhinhas inquestionáveis em veredas possíveis e alternativas negociáveis de
trajetórias. Pelo bem e bom, nada aconteceu no repente e no bruto. Vi a
fumarola de mil possibilidades ir-se dissipando naquele ambiente sentimental
que se mostra como saudade e eu presunçosamente, mantenho no índice da vida,
como história. Foi assim com a poesia.
Peguei
uma fase bacana, na adolescência e primeira onda da juventude, em que uma boa
parte da molecada com a qual eu convivia era vicici em futebol, tocava violão e
fazia poesia. A turma tinha um ramo na minha rua, a Mauriti, e um outro, na
Escola Técnica. E eu, ó, bem na foto. Transitava na maior, nas duas frentes. É
desta época o meu primeiro dedilhado no violão, em exaustivos exercícios
reproduzindo aquele andamento marcado pelos bordões de “A casa do sol nascente”
e também meu primeiro poema. Meus versos iniciais saíram de inspirações
produzidas dentro da biblioteca da Escola Técnica. Havia uma oferta grande de
livros técnicos lá, mas também de literatura com os clássicos ali, à mão.
Peguei logo uma sequência do Vinícius de Moraes da prateleira. Endoidei com a
reflexão necessária estimulada por o “Operário em construção” e pelo lirismo de
“Serenata do adeus”. Naquelas tardes na biblioteca, fiz uma ‘escolha’. Meu
primeiro poema teria não a carga social de um, mas o romantismo sofrido do
outro. Catei um verso aqui, outro ali, assumi os versos livres e compus um
poema muito, mas muito parecido com “Serenata do adeus” e tão parecido, que
pouco tempo além, emboloei o original e joguei fora. Não era justo iniciar com
algo bem próximo ao que, generosamente, defini como uma cópia mal arranjada de
um poema. E logo do Vinícius!
Mais
com pouco tornei. Aprumei num estilo e para meu regozijo, ganhei um concurso de
poesia no Souza Franco. Depois, integrei o prestigiado grupo de letristas do
Grupo Hera da Terra e firmei parceria com músicos de ponta como Edir Gaya e
Arlindo Cruz. Tava que tava de boa.
Com
os anos, fui reconhecendo a graça da prosa e ao mesmo tempo a imensa
responsabilidade que a poesia exigia de mim. Conheci poetas extraordinários, de
rimas ricas e refinadas. Anos luz à minha frente. A autocrítica fez que minha
poesia fosse ficando para trás.
Hoje
admito a regra de cada qual com o seu cada qual. Sou feliz na prosa. Em casos
muito especiais, ainda enveredo pela poesia, e dou à luz apenas os poemas que
me ocorrem em sonhos. Experimento as narrativas poéticas, porém. Com este
perfil mais flexível, me sinto à vontade.
Minhas
escolhas foram reverentes às barreiras. E penso que sensatas.
Pus
em baciinha de água meus punhados e a catação foi descomplicada. Sem cicatrizes
difíceis de cura. Acudido pela sincera humildade. O bom é que não houve
necessidade de descartar mais, absolutamente nada.
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