Sereno da madrugada
Reinava,
por aqueles instantes, a memória da noite. Pelo comum, a rua está no maior
ermo. Uma viva alma sequer. Eu e Deus na parada do ônibus. E nesta última
aventura na madruga, eu, Deus e a neblina. O cenário era de filme de terror. Um
breu noturno ainda, molhado ou, no caso, orvalhado. Silencioso e entregue a
mistérios. Em mim a esperança nervosa de tudo acontecer na paz e nos conformes.
Uma tensão indissimulada se revela em cada movimento que faço. Adiante dou aquela
corridinha para o ponto. É meu ônibus que desce com beira a ladeira e se
aproxima.
Por
esta época do ano, o dia demora clarear. Um lampejinho só aparece depois das
seis. Além do meio do ano, a alvorada se realiza mais ligeiro. Agora, por
causas diversas, o sol se atrasa um pouco. Ainda na apreensão que antecede o
surgimento do primeiro rasgo de luz e do primeiro ônibus do dia, procurei segurança
na iluminação dos postes de rua. Mas quando! O foco era barrado, contido em
grande parte por uma camada espessa de sereno. Adensando o cenário, as árvores
dispostas ao longo da avenida concentravam a solidão e a frieza do momento. Éraste!
Dei a corridinha, fiz o sinal e assim que o ônibus parou, pulei dentro,
aliviado. No meio do caminho clareou, mas o sereno continuou certo e vasto
sobre Belém.
Quando
cheguei ao meu destino e me posicionei na porta para descer, o passageiro à
minha frente estacionou no degrau, olhou pro céu, virou pra mim e perguntou se
aquilo era sereno mesmo ou era chuva se arrumando pra arriar. De prima cravei:
sereno. Não ia perder a oportunidade de resgatar do tempo, o antigo sereno da
madrugada que já estrelou canções, pautou prosas de trancoso, foi enredo de
ralhos e aconselhamentos sobre o potencial que tem de nos constipar e nos legar
amofinamentos e febres, além de nos deixar de lembrança um pinguinho de água
geladinho na ponta do nariz quando a gente, ó, nem maldando está da presença de
água friinha naquela fumaça branca. Mas tem água mesmo.
Eu
procurei as minhas mais objetivas palavras, corri atrás dos meus saberes, fucei
em pesquisas e conceitos meteorológicos na intenção de explicar direitinho o
que é, e por que, aqui, ali, aparece essa neblina (que por causa do passado e
de tantos sentimentos mais, faço questão de chamar de sereno). Acontece que não
é fácil. Tem a ver com atmosfera, pressão, temperatura, umidade do ar, troca de
calor. É coisa tanta de embananar a minha caixola, e de me deixar sem rumo e
sem prumo na intenção de descrever este fenômeno. É o caso de ficar curtindo os
efeitos, o friozinho na ponta do nariz e a tez envelopada de nuvem, rés o chão,
bem pertinho da gente, nos tocando a pele ao amanhecer; no lugar de nos
labirintarmos em deduções levianas sobre os vieses científicos. Ou não. Ou
aprumar no rumo, estudar mais, pesquisar mais, consultar os especialistas das
geociências e desvendar as propriedades da baixa atmosfera, na caté. Aí vai da
gente.
Rapidola
respondi para o passageiro do ônibus que não era chuva, era sereno. E não usei
outro termo que fosse neblina ou névoa, ou ponto de orvalho que seja, ou ainda
nevinha amazônica de beira de rio, ou nevoeiro que vem da mata, ou fumacinha
gris. Dou o maior valor é no sereno mesmo, porque de termo e jeito, pode até
nos constipar, segundo os alertas de mamãe, mas também inspira paz de espírito,
distensão dos temores do dia. Então, quando o homem da minha frente desceu do
ônibus, desci atrás e segui meu caminho. Com a alma serenando, com o ânimo
serenado. Procurando manter a serenidade em atos e pensamentos. O sol esquentou,
dissipou um ou outro sinal de neblina remanescente na baixa atmosfera, dei uma
corridinha, e pulei pra dentro do mundo real. Aquecido e iluminado.
Sodré me senti do teu lado observando o sereno.
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