sábado, 22 de abril de 2023

crônica da semana - transas, danças e caretas

 Transas, danças e caretas

Antes dos textos elaborados, ou mesmo das fake news. Bem anteriores às linguagens dominantes e midiáticas. Ou por outra, dos grunhidos nervosos e dos desenhos rupestres. Lá no início das relações sociais, das primeiras combinas coletivas na intenção necessária de garantir um dia após outro vivo, o ser humano se comunicou com o corpo. Se virou nos trejeitos, caretinhas, nos ‘movimentos poucos e plenos’. Suficientes para estabelecer alianças de mútuas proteções.

Até que gostaria, mas quite, não sou estudioso, especialista, entretanto, tenho pra mim que a versão original das socializações humanas (do bem e do mal) se deram pelo jeito de corpo (e até posso ilustrar esta opinião com a leitura cuidadosa dos elementos cênicos que compõem o filme “A guerra do fogo”, uma produção que se destaca por um enredo todo desenvolvido e perfeitamente assimilável, em que o  exemplar primitivo da humanidade não pronuncia palavra alguma, e se tenta, limita-se a vocalizações vãs e desesperadas. Para reforçar esta impressão, resgato ainda a natureza reveladora da arte naquela sequência de “2001- Uma Odisséia no Espaço”, em que um hominídio usa todo o repertório de evoluções e acrobacias: dá cambalhotas, rola, pula, faz corridinhas e carinha de mau, para demonstrar, naquela encenação selvagem, poder de afastar um grupo adversário na disputa pela água de um laguinho). Desta necessidade de se virar nos trinta pela sobrevivência até uma sobrelevação dos entendimentos, literalmente, foi um passo. Ou, vá lá que seja, alguns passitos. Eis que a Evolução nos legou o poder da dança.

Os caminhos percorridos nos levaram, os humanos a, além de estabelecer missões objetivas ao corpo, também direcionar os movimentos para a celebração, para as manifestações subjetivas. Os cerimoniais envolvendo o corpo são ainda presentes e básicos nas sessões ritualísticas, nas ligações com o desconhecido, com o abstrato, o sagrado e o profano. As coreografias espirituais destacam-se como se fossem transas arrebatadoras, purificadoras.

O corpo, destarte, é um veículo dinâmico e destemido de dizer os sonhos e realidades. E, além dos rituais ou sublimações, me vem agora de oportuno, a luta diária pela ratificação do poder de toda a arte. A abnegada crença na liberdade. O corpo alcança as alturas, nos instantes em que se move em favor da conquista de direitos. A iniciativa do balé Stagium, me vem à memória como uma prova indelével de resistência quando, nos anos de chumbo da década de 70, deu corpo à voz de Plínio Marcos, dançando “Navalha na carne”, peça proibidíssima do dramaturgo, e revelando ousadia, apego, retrabalhando a função subversiva da arte.

Além dos tantos valores que a dança nos regala por toda a existência, ainda, aqui para nós paraenses, nos deu o vigor e a apreciável criatividade de Rolon Ho.

Olha que tenho reservado parte do meu domingo para apreciar a Dança dos Famosos. Fico besta de tanta expressividade. É verdade que presto mais reparo no Rolon, que é um paraense emprestado da Guiana. Puxo a brasa pra nossa sardinha, mesmo que com tempero afrancesado. Vejo graça, todavia, em todos e todas, principalmente nas apresentações coletivas. As coreografias revelam a grandiosidade dessa arte ancestral. A dança permite explorar nuances tímidas e desnudá-las. Vieses argumentativos do corpo se emolduram em contornos plásticos vibrantes e atraentes. Transformadores, doces, emocionantes. A dança descreve futuros, evolução, potências humanizadas. É ferramenta social para amparos mútuos, para enfrentamentos inevitáveis por garantia de água do laguinho ou mesmo por uma nota dez na Dança dos Famosos. Eu torço pelo Rolon.

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