Transas, danças e caretas
Antes
dos textos elaborados, ou mesmo das fake news. Bem anteriores às linguagens
dominantes e midiáticas. Ou por outra, dos grunhidos nervosos e dos desenhos
rupestres. Lá no início das relações sociais, das primeiras combinas coletivas
na intenção necessária de garantir um dia após outro vivo, o ser humano se
comunicou com o corpo. Se virou nos trejeitos, caretinhas, nos ‘movimentos
poucos e plenos’. Suficientes para estabelecer alianças de mútuas proteções.
Até
que gostaria, mas quite, não sou estudioso, especialista, entretanto, tenho pra
mim que a versão original das socializações humanas (do bem e do mal) se deram
pelo jeito de corpo (e até posso ilustrar esta opinião com a leitura cuidadosa
dos elementos cênicos que compõem o filme “A guerra do fogo”, uma produção que
se destaca por um enredo todo desenvolvido e perfeitamente assimilável, em que
o exemplar primitivo da humanidade não pronuncia palavra alguma, e se tenta,
limita-se a vocalizações vãs e desesperadas. Para reforçar esta impressão,
resgato ainda a natureza reveladora da arte naquela sequência de “2001- Uma
Odisséia no Espaço”, em que um hominídio usa todo o repertório de evoluções e
acrobacias: dá cambalhotas, rola, pula, faz corridinhas e carinha de mau, para demonstrar,
naquela encenação selvagem, poder de afastar um grupo adversário na disputa
pela água de um laguinho). Desta necessidade de se virar nos trinta pela sobrevivência
até uma sobrelevação dos entendimentos, literalmente, foi um passo. Ou, vá lá
que seja, alguns passitos. Eis que a Evolução nos legou o poder da dança.
Os
caminhos percorridos nos levaram, os humanos a, além de estabelecer missões
objetivas ao corpo, também direcionar os movimentos para a celebração, para as
manifestações subjetivas. Os cerimoniais envolvendo o corpo são ainda presentes
e básicos nas sessões ritualísticas, nas ligações com o desconhecido, com o
abstrato, o sagrado e o profano. As coreografias espirituais destacam-se como
se fossem transas arrebatadoras, purificadoras.
O
corpo, destarte, é um veículo dinâmico e destemido de dizer os sonhos e
realidades. E, além dos rituais ou sublimações, me vem agora de oportuno, a
luta diária pela ratificação do poder de toda a arte. A abnegada crença na
liberdade. O corpo alcança as alturas, nos instantes em que se move em favor da
conquista de direitos. A iniciativa do balé Stagium, me vem à memória como uma
prova indelével de resistência quando, nos anos de chumbo da década de 70, deu
corpo à voz de Plínio Marcos, dançando “Navalha na carne”, peça proibidíssima
do dramaturgo, e revelando ousadia, apego, retrabalhando a função subversiva da
arte.
Além
dos tantos valores que a dança nos regala por toda a existência, ainda, aqui
para nós paraenses, nos deu o vigor e a apreciável criatividade de Rolon Ho.
Olha
que tenho reservado parte do meu domingo para apreciar a Dança dos Famosos.
Fico besta de tanta expressividade. É verdade que presto mais reparo no Rolon,
que é um paraense emprestado da Guiana. Puxo a brasa pra nossa sardinha, mesmo
que com tempero afrancesado. Vejo graça, todavia, em todos e todas, principalmente
nas apresentações coletivas. As coreografias revelam a grandiosidade dessa arte
ancestral. A dança permite explorar nuances tímidas e desnudá-las. Vieses
argumentativos do corpo se emolduram em contornos plásticos vibrantes e
atraentes. Transformadores, doces, emocionantes. A dança descreve futuros,
evolução, potências humanizadas. É ferramenta social para amparos mútuos, para
enfrentamentos inevitáveis por garantia de água do laguinho ou mesmo por uma
nota dez na Dança dos Famosos. Eu torço pelo Rolon.
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