Trem das cores
Passei
a semana ensaiando, fiz uma sessão em minha página na internet, expus a afeição
que tenho pela canção ‘Trem das cores’, de autoria do baiano Caetano. É melodia
refinada, tem uma harmonia delicada, embora de difícil execução, coisas de Caê.
Se engolir uma sílaba melódica, a música desanda. Entretanto, no caso, se
desandar, não se perde de tudo. Somos mortais, simples, de dons limitados, e a
nós é permitido aquele generoso desconto. Digo nós, porque recrutei meu filho
Argelzinho, para apresentarmos juntos a canção, no último domingo, como
homenagem à vovó dele, minha sogra, que completou intensamente vividos 76 anos.
A escolha da música tem um simbolismo. Uma razão potente, cheia de
significados.
Fez
a trilha sonora de um reencontro. Foi tudo muito denso no dia. O mundo estava
assombrado com o Coronavírus. A gripe tirava a vida de muitos queridos sem
licença alguma ou piedade. Minha sogra que no início da pandemia estava no
interior, por lá ficou isolada. Contato somente com poucos membros da família e
apenas para assistências inadiáveis. Isso tudo no interior. Passou meses sem
vir a Belém. E era a opinião de todo mundo que ela, por lá, em favor da saúde,
aguentasse o tempo e a distância. A situação estava delicadíssima. Aqui em
Belém já chorávamos a perda de parentes próximos e amigos muito queridos.
O
tempo passou lento e de forma sofrida. A família, as crianças, a netaiada, a
bisnetaiada, mesmo no rigor do isolamento acusaram a falta da bisa, da mãe, da
avó. Eu, mesmo defensor das eficientes resultantes do distanciamento, cheguei a
admitir uma operação para que as saudades fossem aplacadas. E eis que
aconteceu. Depois de longuíssimos cinco meses exilada no interior, pela
precisão de uma consulta médica, ela retornou a Belém.
Houve
uma elaborada estratégia, afinal, a curva da tragédia gerada pela Covid-19 só
subia. Uma casa preparada exatamente para recebê-la, com freqüência restrita.
Consultas e exames realizados no estrito termo da hora marcada e o alento das
chamadas de vídeo. Calhou de chegar o domingo dos pais e de nosso núcleo
familiar planejar um almoço com número contado de participantes. Daí pensamos:
por que minha sogra não poderia vir e também toda a família ansiosa por vê-la?
Faríamos horários diferentes, contatos limitados e visitação por batelada. Tudo
certo. No dito domingo, ela apareceu no portão, cedo. Envolvida em avental,
usando face shield, máscara, óculos, luvas. Venceu o corredor e acomodou-se no quintal,
de forma soberana. Satisfazia ali a regra inequívoca que pauta a união da
família. Estava presente, como em tantas ocasiões inspirando com a propriedade
justa só dela, de unir aquelas pessoas. E a cada instante, cada núcleo na sua
ordem foi aparecendo para reverenciar a matriarca e acreditar na vida.
Realizando abraços simbólicos, recebendo a bença com os olhos, trocando
carinhos com a alma.
Encerradas
as sessões, nosso núcleo continuou a confraternização protocolar que o
distanciamento social permitia. Cada qual com seu prato, seu talher, seu copo,
seu alquinho. Ocupamos o espaço, agora amplo, no quintal, tantas vezes minado
milímetro a milímetro de alegria e espontaneidade, nos saraus sempre
estimulados pela minha sogra em tempos outros mais pródigos. E como meu filho
estava com o violão, alguém provocou: canta aí, Argelzinho. Ele, sempre reservado,
no caso desses estímulos no repente para cantar e tocar, dominou o recato, dedilhou
as cordas, alinhou o tempo, sustentou a harmonia e de um jeito doce, sincero,
expressando toda a grandeza daquele reencontro, cantou, sem errar nadinha, ‘Trem
das cores’ do baiano Caetano. E todo mundo cantou junto. Inesquecível!
Domingo, agora, cantamos de novo.
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