domingo, 1 de janeiro de 2023

crônica da smana - deu maia-noite e nada

 Deu meia-noite e nada

Vi com agrado a atitude do comércio varejista de Belém, em dar folga para trabalhadores do setor, no dia de Natal. Prezo e apoio a ação, desafiadora para nossos conceitos ranzinzas.

Torno uns anos e me vejo atrás do balcão da taberna do Eunício, pleno 24 de dezembro. Já dando meia-noite e os fregueses ali animados que só eles, sem medo de serem felizes. Meu patrão, a quem havia me pegado na confiança de me liberar para o Natal em família, não estava nem somando, aliás, estava sim, era patrocinando derrames de gelada. Ao longo da noite, quedara de comedido caixeiro a autêntico folgazão, no meio da patota. Dera férias às estribeiras. De centrado e serviçal, só eu mesmo, já na batida da campa da Missa do Galo. Levando cerveja à mesa, passando pano no molhado, cortando uma mortadela, mudando o disco da vitrola, trocando os copos ou juntando cacos daqueles, que pelo fulgor da hora, espatifavam-se ao escapulir das mãos alegres. Fulo da vida. O tempo passando e aquele povo nada de ir embora e o patrão nada de me prover do justo numerário do dia. Mamãe e as meninas me esperando para irmos pra casa da vovó. Toda família. A festa do Natal em tempo de acontecer. Ainda tinha a caminhada dos estirados da Marquês, até minha casa, na Mauriti, tomar banho, passar um extrato, dar um trato no cabelo, a esticada pra casa da vovó. Naquele tempo não tinha celular, uber, essas coisas. Era tudo ao tempo e à palavra. E o falatório minava farto naquela mesa da taberna, entre os entusiasmados e ainda bem sujinhos borracheiros e o meu patrão. Será que aquela gente não tinha família? Maldava.

Eram funcionários da borracharia que ficava ao lado. Consumidores certos, fiéis da taberna. Mudaram até o perfil do serviço que a taberna prestava. Antes pautada nos víveres, secos, molhados; nas precisões da tarde, do tipo pão e meio e o troco de manteiga, estivas em geral e retalhos do tamanho de uma medida de óleo ou duas viradas da faca no sabão em barra, a taberna passou a ofertar para os borracheiros, também, café da manhã, almoço, bebidas em geral e uma amizade pragmática. Que incluía agüentar de tudo dos fregueses, até nos tirar do Natal em família.

Naquela noite, eu estava por acolá com aquela turma, mas atendia na tolerância e no limite de meus pressentimentos. Gostava deles. Eram operários dedicados. Nos davam um bom lucro. Vez em vez, ao final de uma tarefa varavam no balcão, tomavam um leitinho, contavam causos. Tinha até intimidade com o Bat-fino, o Zecão, o Charles. Deixavam gorjetas pra mim.

Deu meia-noite e nada. Esticaram o que deu. Cheguei depois do caso passado, na casa da vovó. E, já meio com sono. Havia uma mensagem escondida naquela alegria toda, que me fez perder a confraternização da família.

Meses depois uma peça da caldeira da borracharia foi achada a dois quarteirões do local de origem. Da porta da taberna vi, como cravou certa vez Machado, com inegável elegância, ‘com a cegueira que me permitia a comoção’, Bat-fino sair carregado do prédio, inanimado, nos braços dos companheiros...

No Natal seguinte, não estava mais na taberna (e nem mais aquela turma de alegria desmedida à mesa, bem além da meia-noite). Mas de toda a sorte que tinha, nos meus tenros 14 anos, já tinha outro emprego em horário que ia de novo até o limite da meia-noite, agora num supermercado que ficava de confronte ao estádio do Remo.

Espero que antes da meia-noite, o comércio libere os trabalhadores hoje, e prolongue o meu agrado. Que a gente tenha esperança, trabalho, saúde, neste ano que começa. E que nos chegue um tempo de paz, livre do mal e do perigo.

Feliz ano novo!

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