Deu meia-noite e nada
Vi
com agrado a atitude do comércio varejista de Belém, em dar folga para trabalhadores
do setor, no dia de Natal. Prezo e apoio a ação, desafiadora para nossos
conceitos ranzinzas.
Torno
uns anos e me vejo atrás do balcão da taberna do Eunício, pleno 24 de dezembro.
Já dando meia-noite e os fregueses ali animados que só eles, sem medo de serem
felizes. Meu patrão, a quem havia me pegado na confiança de me liberar para o
Natal em família, não estava nem somando, aliás, estava sim, era patrocinando
derrames de gelada. Ao longo da noite, quedara de comedido caixeiro a autêntico
folgazão, no meio da patota. Dera férias às estribeiras. De centrado e
serviçal, só eu mesmo, já na batida da campa da Missa do Galo. Levando cerveja
à mesa, passando pano no molhado, cortando uma mortadela, mudando o disco da
vitrola, trocando os copos ou juntando cacos daqueles, que pelo fulgor da hora,
espatifavam-se ao escapulir das mãos alegres. Fulo da vida. O tempo passando e
aquele povo nada de ir embora e o patrão nada de me prover do justo numerário
do dia. Mamãe e as meninas me esperando para irmos pra casa da vovó. Toda
família. A festa do Natal em tempo de acontecer. Ainda tinha a caminhada dos
estirados da Marquês, até minha casa, na Mauriti, tomar banho, passar um
extrato, dar um trato no cabelo, a esticada pra casa da vovó. Naquele tempo não
tinha celular, uber, essas coisas. Era tudo ao tempo e à palavra. E o falatório
minava farto naquela mesa da taberna, entre os entusiasmados e ainda bem
sujinhos borracheiros e o meu patrão. Será que aquela gente não tinha família?
Maldava.
Eram
funcionários da borracharia que ficava ao lado. Consumidores certos, fiéis da
taberna. Mudaram até o perfil do serviço que a taberna prestava. Antes pautada
nos víveres, secos, molhados; nas precisões da tarde, do tipo pão e meio e o
troco de manteiga, estivas em geral e retalhos do tamanho de uma medida de óleo
ou duas viradas da faca no sabão em barra, a taberna passou a ofertar para os
borracheiros, também, café da manhã, almoço, bebidas em geral e uma amizade
pragmática. Que incluía agüentar de tudo dos fregueses, até nos tirar do Natal
em família.
Naquela
noite, eu estava por acolá com aquela turma, mas atendia na tolerância e no
limite de meus pressentimentos. Gostava deles. Eram operários dedicados. Nos
davam um bom lucro. Vez em vez, ao final de uma tarefa varavam no balcão,
tomavam um leitinho, contavam causos. Tinha até intimidade com o Bat-fino, o
Zecão, o Charles. Deixavam gorjetas pra mim.
Deu
meia-noite e nada. Esticaram o que deu. Cheguei depois do caso passado, na casa
da vovó. E, já meio com sono. Havia uma mensagem escondida naquela alegria toda,
que me fez perder a confraternização da família.
Meses
depois uma peça da caldeira da borracharia foi achada a dois quarteirões do
local de origem. Da porta da taberna vi, como cravou certa vez Machado, com
inegável elegância, ‘com a cegueira que me permitia a comoção’, Bat-fino sair
carregado do prédio, inanimado, nos braços dos companheiros...
No
Natal seguinte, não estava mais na taberna (e nem mais aquela turma de alegria
desmedida à mesa, bem além da meia-noite). Mas de toda a sorte que tinha, nos
meus tenros 14 anos, já tinha outro emprego em horário que ia de novo até o
limite da meia-noite, agora num supermercado que ficava de confronte ao estádio
do Remo.
Espero
que antes da meia-noite, o comércio libere os trabalhadores hoje, e prolongue o
meu agrado. Que a gente tenha esperança, trabalho, saúde, neste ano que começa.
E que nos chegue um tempo de paz, livre do mal e do perigo.
Feliz
ano novo!
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