sábado, 30 de abril de 2022

crônica da semana - dia do trabalho

 Bom trabalho!

O dia ainda estava clareando e a gente já se abalava de casa em casa, recrutando os companheiros e as companheiras. Ainda hoje passados, vixi, nem sei quantos anos, recordo os rostos curiosos, semblantes pensativos, faces sisudas e preocupadas. Olhares indecisos. Tínhamos uma missão das mais desafiadoras. Parar a cidade.

Nossa coleta não teve o sucesso esperado. Arregimentamos pouco mais que quatro gatos pingados. O sistema não iria sentir sequer uma coceirinha, com aquela nossa mobilização.

O sentimento, porém, indicava: fosse luta com possibilidade mínima de vitória; o caminho se fizesse arriscado e turbulento; houvesse barreira da maior altura para ultrapassar ou um exército de desanimadores motivos a ser combatido, era lá que estaríamos com gosto e decisão.

Embarcamos no popopô em  Barcarena e rumamos, tal os combatentes cabanos, para Belém...

Tenho em mim razões bem tecidas, e assumidas para crer num dia Primeiro de Maio do Trabalho que espelhe todo o valor histórico que os operadores do mundo, e de tudo que se produz, carregam em si. Pelas mãos do trabalhador a sociedade se mostra no que é, desde as primeiras alterações que o homem fez nos elementos da natureza e deu a eles, novos significados. O trabalho transforma, recria, remodela os termos e as coisas. A capacidade criadora do homem define futuro, explica e remonta o passado, provê de motivos o presente. E é medido ao mesmo peso. Não há o menor ou o mais leve. Vejo arte igual na concepção de um poema, no troco rápido de um vendedor de água no sinal, na confecção de um parafuso sextavado, na planilha virtual de custos e metas. Na aplicação da vacina salvadora e no estudo científico elaborado contra o negacionismo. O poder do ser humano em interferir na compleição e na envergadura do que é mero e primitivo é infinitamente fascinante. O trabalho é uma ação transformadora, social e às vezes, sentimental.

... Não deu para interromper a vida da cidade, mas fechamos uma esquina esquecida do centro de Belém e demos o nosso recado. Foi uma ação ao todo e ao tempo, vencedora. Quando o Fé em Deus atracou de bombordo, lançou o cabo e nos despejou, os quatro gatos pingados na calçada do Ver-o-Peso, nos uniu e nos transformou em uma legião de milhares, confiante e pautada em sonhos.

Caminhamos pelo centro em passeata, listando ao megafone nossas reivindicações, eufóricos, animados ante um compreensível alheamento da população apressada. Nos arredores do edifício das leis, parentes, amigos próximos, companheiros de outras categorias nos aguardavam com uma sinfonia de bate-panelas. A pequena orquestra, mais nossas bandeiras, o heróico megafone e a proximidade com o poder chamaram a atenção. Aí veio a polícia.

A guarnição não deu nem as horas. Não maldou que aqueles quatro gatos pingados fossem macular o sistema. Mais para a nossa segurança que para outro fim, interditou aquela esquina. Fizemos nossa manifestação e voltamos para Barcarena com o resultado histórico de ter fechado uma rua da grande cidade, atiçado a imprensa e uns poucos curiosos. Deu até na TV.

Tantos anos se passaram desde que desatracamos de Barcarena para semear sonhos em Belém. Aquela viagem enseja a crônica de hoje e me dá um alento para crer que a luta não foi em vão. Mesmo enfrentando turbulência, os quatro gatos pingados navegaram infinitos mares por esses anos. A eles, Gilvandro, Paiva, Vaz, Dr. Geraldo, dedico o dia Primeiro de Maio.

Aos operadores do mundo e de tudo que se produz, bom trabalho!

 

 

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