Bom trabalho!
O
dia ainda estava clareando e a gente já se abalava de casa em casa, recrutando
os companheiros e as companheiras. Ainda hoje passados, vixi, nem sei quantos
anos, recordo os rostos curiosos, semblantes pensativos, faces sisudas e preocupadas.
Olhares indecisos. Tínhamos uma missão das mais desafiadoras. Parar a cidade.
Nossa
coleta não teve o sucesso esperado. Arregimentamos pouco mais que quatro gatos
pingados. O sistema não iria sentir sequer uma coceirinha, com aquela nossa
mobilização.
O
sentimento, porém, indicava: fosse luta com possibilidade mínima de vitória; o
caminho se fizesse arriscado e turbulento; houvesse barreira da maior altura
para ultrapassar ou um exército de desanimadores motivos a ser combatido, era
lá que estaríamos com gosto e decisão.
Embarcamos
no popopô em Barcarena e rumamos, tal os
combatentes cabanos, para Belém...
Tenho
em mim razões bem tecidas, e assumidas para crer num dia Primeiro de Maio do
Trabalho que espelhe todo o valor histórico que os operadores do mundo, e de
tudo que se produz, carregam em si. Pelas mãos do trabalhador a sociedade se
mostra no que é, desde as primeiras alterações que o homem fez nos elementos da
natureza e deu a eles, novos significados. O trabalho transforma, recria, remodela
os termos e as coisas. A capacidade criadora do homem define futuro, explica e
remonta o passado, provê de motivos o presente. E é medido ao mesmo peso. Não
há o menor ou o mais leve. Vejo arte igual na concepção de um poema, no troco
rápido de um vendedor de água no sinal, na confecção de um parafuso sextavado,
na planilha virtual de custos e metas. Na aplicação da vacina salvadora e no
estudo científico elaborado contra o negacionismo. O poder do ser humano em
interferir na compleição e na envergadura do que é mero e primitivo é
infinitamente fascinante. O trabalho é uma ação transformadora, social e às
vezes, sentimental.
...
Não deu para interromper a vida da cidade, mas fechamos uma esquina esquecida
do centro de Belém e demos o nosso recado. Foi uma ação ao todo e ao tempo,
vencedora. Quando o Fé em Deus atracou de bombordo, lançou o cabo e nos
despejou, os quatro gatos pingados na calçada do Ver-o-Peso, nos uniu e nos
transformou em uma legião de milhares, confiante e pautada em sonhos.
Caminhamos
pelo centro em passeata, listando ao megafone nossas reivindicações, eufóricos,
animados ante um compreensível alheamento da população apressada. Nos arredores
do edifício das leis, parentes, amigos próximos, companheiros de outras
categorias nos aguardavam com uma sinfonia de bate-panelas. A pequena
orquestra, mais nossas bandeiras, o heróico megafone e a proximidade com o
poder chamaram a atenção. Aí veio a polícia.
A
guarnição não deu nem as horas. Não maldou que aqueles quatro gatos pingados
fossem macular o sistema. Mais para a nossa segurança que para outro fim,
interditou aquela esquina. Fizemos nossa manifestação e voltamos para Barcarena
com o resultado histórico de ter fechado uma rua da grande cidade, atiçado a
imprensa e uns poucos curiosos. Deu até na TV.
Tantos
anos se passaram desde que desatracamos de Barcarena para semear sonhos em
Belém. Aquela viagem enseja a crônica de hoje e me dá um alento para crer que a
luta não foi em vão. Mesmo enfrentando turbulência, os quatro gatos pingados
navegaram infinitos mares por esses anos. A eles, Gilvandro, Paiva, Vaz, Dr.
Geraldo, dedico o dia Primeiro de Maio.
Aos
operadores do mundo e de tudo que se produz, bom trabalho!
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